Eva e Adão amaram em Bagdá

Viver muito pode ser penitência. Ainda hoje, há quem se lembre da rosa de Malherbe, a que vivia toda eternidade num instante fugaz. Tudo, no esplendor da vida, mostra o milagre do instante, ainda que tanto tempo se perca pensando-se em eternidade, perenidade, futuro, em algum amanhã. Enquanto isso, esvai-se o tesouro do instante. Há um em cada momento. Por isso, felizes devem ser os que se dão conta disso, pois – a partir da descoberta de um único instante – sonhos de eternidade, sonhá-los se torna possível.

Poetas e místicos sabem disso. Os amantes, também. São os que, num único lampejo, encontram fiapos do divino no humano. Quem o conhece quer eternizar o instante do êxtase. A idéia de céu deve ter nascido da busca do prazer eterno. Só a quem foi dada a graça dessa plenitude – sentir o bafejo ou ter a visão do Inefável – mesmo que num relance, é capaz de, quase desesperadamente, inventar a possibilidade de um lugar e de um tempo de gozos sem fim. O shangrilá nasce desse sonho. Como a Pasárgada de Bandeira. Como o Éden, esse “jardim de delícias” que encanta o imaginário de todas as civilizações, desde as mais primitivas.

Não há povo ou cultura que não tenha acreditado no encontro ou reencontro desse “Paraiso Perdido”, o jardim construído por Deus, a promessa das delícias. E é notável ver como jardim, a palavra, mantém semelhanças em tantas línguas e para tantos povos: o jardim da língua portuguesa é o mesmo “jardin” dos franceses, o “jardín” dos espanhóis, o “giardino” italiano, o “garden” da língua inglesa, “garten” dos alemães.

Há que se acreditar no sagrado. Não por superstição, nem mesmo por fé, mas por simples religiosidade humana. O homem é um animal religioso, independentemente de crenças. Religioso é o índio com seus tótens; o cristão, com sua doutrina. Sagrados são a família do homem, o solo da pátria, o chão da casa. O sagrado faz parte da história humana. Esquecer esse sentido da sacralidade do mundo e da vida é o primeiro passo para perder-se o respeito por tudo e por todos os que nos cercam.

Lembrei-me de ter-me emocionado, há alguns anos, com uma nota quase perdida num rodapé de jornal. A mim, ela parecia mostrar como a alma humana, universal por si mesma, se encontra e se reencontra até mesmo entre escombros de bombardeios, entre fumaça de incêndios destruidores. Na Bagdá, então bombardeada por Bush e Blair, dois jovens soldados dos Estados Unidos casaram-se com moças iraquianas, após converterem-se à religião muçulmana. Seus governos não tiveram o poder de impedir o amor. Nem as religiões. O amor realizou-se sob as bênçãos de Cristo e Maomé. E de Jeová. Aquele é o solo da fé abrahâmica.

Quando os Estados Unidos tiveram gozos de prazer ao bombardear Bagdá, houve, no mundo, o medo da cólera dos deuses. O simples nome, Bagdá, revela o que a cidade representa para os iraquianos, em sua origem sânscrita: “dada por Deus”, eis Bagdá. Um povo que acredita nisso não admitiria, jamais, que a sacralidade de sua terra fosse violada. Bush nada entendia dessas coisas, ainda não entende sequer a tragédia que promoveu. De minha parte, fiquei ainda mais sobressaltado. Pois, numa leitura descompromissada, aprendi que, na história dos judeus, o lugar maravilhoso, o jardim de delícias, estava nas beiradas dos rios Tigre e Eufrates, lá onde nasceu a humanidade. Àquele lugar, judeus primitivos deram um nome: “gan-eden”, o jardim.

Às margens bombardeadas do Tigre e do Eufrates, dois jovens soldados dos Estados Unidos casaram-se com moças do Iraque. Pela lenda, Adão e Eva também começaram lá. Mas, ainda agora e mesmo com Obama, no “garden” da Casa Branca, militares dos Estados Unidos não sabem do Eden, do “gan-eden” em Bagdá. Bom dia.

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