Tote, testemunha viva da rua mais bonita, a rua do Porto

O texto abaixo foi publicado em dezembro de 1987 no semanário impresso A Província. Recuperamos para lembrar os 30 anos de atuação em Piracicaba.

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Rua do Porto sem Antonio de Pádua, o Tote, não é rua do Porto. Pode parecer exagero, mas não é. Aos 60 anos, Tote é inspetor de quarteirão, conselheiro, sambista e até barbeiro. Faz barba a canivete e arranca dente com alicate. A pessoa não sente nada. Um golinho de pinga antes e um depois funciona como uma boa anestesia. Pega o alicate com jeito, segura forte o dente, dá uma viradinha de um lado e do outro para soltar a raiz, e o puxão final e fatal. “Nossa, se esta cadeira aqui falasse”, diz, soltando uma debochada gargalhada.

Tote é uma das figuras tradicionais da Rua do Porto. Ribeirinho legítimo, de alma e coração, é devoto do Divino Espírito Santo desde os sete anos, quando cumpriu uma promessa feita pela sua mãe e vestiu-se de marinheiro. “Não sei o que ela pediu. Só sei que não deixei mais o Divino”.

Para ele, o Divino Espírito Santo é “milagreiro”. Em 1958, num encontro das bandeiras, no rio Piracicaba, a barcaça que levava o padre, a banda e muita gente afundou onde havia o antigo porto de areia do Adâmoli. Tote conta: “Só quem não caiu na água foi o padre, que ficou dependurado na grade do barco. A banda afundou com instrumento e tudo. A gente só via as asas dos anjinhos de fora. Aquele mundão de gente crianças, mulheres, marinheiro, tudo dentro da água. Não morreu ninguém graças ao Divino” — conta Tote.

Um outro milagre que atribui ao Divino é a cura de um amigo que mora na rua do Porto. Ele trabalhava numa fábrica de bebida e carregava caixas pesadas nos ombros. Formou um caroço e quando foi ao médico ficou sabendo que era câncer. “Daí, pegaram uma bandeira e deram para a mulher dele colocar debaixo do travesseiro. O médico já tinha falado que ele iria ser operado, perderia a voz e morreria logo. Hoje ele tá aí, mais forte que eu”.

Santo forte 

Todos os dias de manhã, a primeira coisa que Tote faz ao se levantar é dar uma espiadinha no velho Piracicaba que fica a poucos metros de sua casa. Tote conhece este rio como a palma de sua mão. Em 1971, ele recebeu, em São Paulo, o troféu “Índio de Prata” pelos inúmeros corpos que tirou do fundo do Piracicaba e os salvamentos que fez. “Tirei, entre vivos e mortos umas 100 pessoas” — afirma, apontando as águas barrente do rio.

Tote é um exímio nadador. Quando era moleque, ao invés de ir para a escola, ficava nadando numa lagoa que tinha perto de sua casa. Quando vinha o boletim de notas, era surra na certa. Mas valeu, e acabou dando as primeiras auIas de salvamento aos primeiros bombeiros da cidade.

Ele lembra: “Um dia, um moço estava lavando o carro numa rampa que dá acesso ao rio, próximo ao Regatas. Começou a andar nas margens até que desapareceu num poço. Um homem preto pulou para salvá-lo e acabou ficando. Veio mais uma trempa e ficou todo mundo lá. Ia todo mundo morrer afogado. O meu irmão tinha uma vara de pescar dourado e tirou as sete pessoas, e eu pulei e fui pro fundo buscar o gordinho” –  disse. “Por que só eu consegui tirar? O meu santo é forte”.

Tote é aposentado. Ele trabalhou na Mausa de ajustador, mas quando morria gente no rio, seu patrão Romeu de Souza Carvalho (“se existe céu ele está lá de caixão e tudo”) o deixava de folga para encontrar o morto. “Aquela época não tinha bombeiro” — justifica.

Tote não é pescador, mas conta história como ninguém. Segundo ele, na época boa do Piracicaba, quando tinha peixe para dar com pau, pescavam de guarda-chuva e até com a boca. Se alguém duvidar, ele arranja pelo menos sete pessoas para provar que é verdade.

Pegar peixe com guarda-chuva era moleza. Bastava segurá-lo ao contrário e esperar o peixe pular dentro. “E pegava mesmo”. Um dia, um rapaz que morava na Vila Boys, mergulhou para pegar peixes com as mãos. “O mandi é o peixe mais bobo que tem, quando bate nele dentro da água, ele fecha o ferrão”. No fundo, para aproveitar o mergulho, o moço colocou um peixe na boca e segurou um em cada mão, mas quando foi sair, deu uma respirada forte e engoliu o peixe. “O mandi ferroou a sua garganta e o moço teve que ser levado para Campinas. Chegou lá quase morto” – fala.

Mas essa conversa de pegar peixes com as mãos colocou um amigo de Tote em situação difícil. João, um ex-goleiro do XV de Piracicaba, bebia um pouco demais e ficava “perigoso”. Sua mulher decidiu interná-lo para um tratamento. Depois de um tempo, João já estava bem melhor e numa conversa com os outros internados contou que aqui em Piracicaba tinha tanto peixes que se pescava com as mãos. Não é que grudaram nele e o levaram para dar choque, pois acharam que ele estava ficando doido.

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Rio milagroso 

Antigamente o comprador podia se dar ao luxo de escolher os peixes que queria. O dourado e o pintado eram os preferidos. O cascudo não se comia porque tinha um leite e os antigos diziam que dava dor de barriga; o corumbatá tinha muito espinho e o Jaú dava “cabeça de prego” (furunco). Por isso, o jaú era usado apenas como isca para pegar outros peixes. O pescador fazia uma pindaqüema (bambu grosso com anzol e chumbo na ponta) que era fincado no barranco. O jaú era fisgado pelo rabo. Mas às vezes, o jaú pegava um outro jaú. O pescador ficava louco de raiva e antes de soltá-lo dava-lhe umas boas pauladas.

Piracajuba era outro peixe muito encontrado no rio, principalmente no bosteiro, onde era despejado o esgoto da cidade. “Tinha piracajuba que tremia de gorda, mas ninguém queria saber. Tinha que oferecer de longe para não apanhar. Joga essa porcaria no rio” – diziam. Tote sempre conseguia convencer uma velhinha, que não saia de sua casa, a ficar com o peixe. Mas antes de oferecer a ela, porém, fazia massagem na piracajuba até ela soltar toda porcaria que tinha dentro. “O peixe ficava até mole. Eu falava a ela que tinha pescado na ponte do Morato. E até jurava.”

Saudade em verso 

Tote tem saudade da antiga rua do Porto, quando os eucaliptos tomavam toda margem do rio, e do vai-e-vem dos barcos de uma margem a outra, levando os trabalhadores do engenho central, que movimentavam a água transparente.

Faz uns 40 anos. Quando ele sentia sede, ia beber água no rio. “A gente entrava nele e via os pés no fundo” – disse. “Tinha uns homens, que ficavam aí tirando areia, que bebiam água na pá”. Hoje, Tote passa horas olhando para o Piracicaba. “Ele é milagroso” – a diz ao olhar os peixes pulando. É a piracema, época da desova. Em sua opinião, deveriam proibir a pesca por uns dois ou três anos. “Daí, o rio já ia ficar bão de novo, cheio de peixes”. Aliás, segundo Tote, o único peixe que morre “afogado” é o cascudo. “Ele vive onde tem pedras ou barro para poder apoiar a cabeça” — tenta explicar.

Tote só sai da rua do Porto quando morrer. Na verdade, ele queria ser enterrado ali mesmo, na beira do rio. Ele pensa sempre nisso. Unindo a saudade, lembranças e seus sonhos, escreveu:

“Velha rua dos meus sonhos

Um passado em mim deixou

A lembrança ainda existe

E a saudade o tempo não levou

Minha rua é tão linda

Por todos admirada

Junto de ti sou tudo

Longe de ti sou nada

Foi meu berço de criança

Rua da minha ilusão

Tu viverás para sempre

Dentro do meu coração

Junto de ti eu revejo

Os meus entes queridos

Para quem uma prece ofereço

Jamais serão esquecidos

Bairro de ti não esqueço

E vivo pensando assim

Enquanto você cresce

Eu vou chegando ao fim

Coisa que sempre pensei

E que carrego comigo

Queria que fizesse aqui meu eterno jazigo”.

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