Amigo

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Foto: Reprodução Google

Já era tardinho da noite. Ele respondeu que estava imprestável demais para responder. “Escreverei amanhã”.

Respondi em seguida, na velocidade desta tecnologia fantasticamente rápida: “Posso fazer par com você? Somos dois imprestáveis numa noite suja”. Esperei uma resposta, que não veio.

Ah, meu amigo querido! A condição da miséria humana!… A triste e frágil condição de nossas almas! O que fazer dela? O que é que há? Vamos tomar um chope juntos? Você só toma vinho. E é conhecedor, entende tudo. Beleza. Eu sou mais ou menos. Porém, não faço feio. Então, vamos? Você escolhe a garrafa, claro. E brindaremos a este mundo sujo e decaído, que agoniza no fragor das catástrofes e dos assassinatos cuidadosamente planejados. Nem vamos comentar isso, vai. O Ocidente também mata em nome de Deus.

Vamos brindar ao luto destes tempos, meu amigo ilustre. Vamos erguer nossas taças reluzentes ao código de honra pelo qual vimos nos pautando desde sempre. Até a morte! Haja o que houver. Viva! Há honra demais em nós, cavaleiros corajosos da noite suja.

Vamos sair pela noite, meu amigo? Quero me sujar de estrelas. Quero me poluir de poesia, qualquer uma, mesmo as de rima duvidosa (que eu também cometo). Ou ainda, dos mais belos poemas, os de Neruda, as canções desesperadas de amor, aquelas de paixão proibida. Chora comigo?

Uma vez, meu Anjo estava do meu lado e viu que eu havia acabado de escrever um poema cafajeste. Perguntou se eu não tinha vergonha. Respondi que o poema era cafajeste; eu não.

Eu não sou cafajeste. Sou solidária com os imprestáveis, miseráveis, desamparados, numa noite em que os galos se recolhem e os grilos estão em recesso. Ah, os perdidos numa noite suja! Quantos estão por aí?

Eu cantei para você, um dia. Você não ouviu, meu amigo. Quieto aí. Deixe-me acabar de falar. Agora, vou cantar guarânias e boleros em castelhano, de rasgar o peito e vamos chorar juntos. La Barca. Dois imprestáveis. A noite é só uma imagem fantasmagórica da mais astronômica beleza, uma coberta outonal e oportuna.

Vamos, está na hora. Pegue na minha mão. Faça de conta que esta virtualidade que nos separa também nos aproxima e nos deixa face a face. Você não sabe onde fica um belo restaurante para comer um peixe assado na beira do Rio Piracicaba? E eu não sei atravessar sozinha a Avenida Paulista. De mãos dadas com você, como se dizia antigamente, vou até a Conchinchina.

Ah, por que eu escrevo tudo isso? Porque eu vi o fogo. Vi quando nossas almas soltaram chispas, bem na hora em que lhe perguntei se podia fazer par com você, pois éramos dois imprestáveis numa noite suja.

Só que nossa vocação (Deus seja louvado!) é sermos limpos e belos. E depois do banho tomado, você veste aí um terno e fica maravilhoso. Eu aqui me arrumo, faço a maquiagem, os cabelos brilhando, passo perfume, como toda bela mulher que se preze. Vestida para matar, quero mais é ouvir “que linda!”, quando passar por aí. “É o sal da vida”, diria minha mãe. E então, nossa vocação é a prestabilidade. Temos de prestar e fazer bonito neste mundo decadente. A noite pode ser suja e dura; nós não.

Meu amigo, amigo de verdade!
Há quantos anos somos amigos? Há décadas, eu sei. Você me fez favores e jamais terei palavras para agradecer. Eu vou às lágrimas. Acredite. Seu grito de socorro chega toda hora até aqui. Mas eu não posso fazer nada. Nada. A não ser enviar esse bilhete eletrônico, apreensivo, solidário, intenso e leal. Cuide-se, belo!

Quero bem a você e não preciso provar. Até o brinde. Se Deus quiser! Você escolhe. Eu não entendo mesmo…

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