A glória do mundo

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michaelQuem já não quis na vida, um dia, a glória do mundo? Quem já não fez coisas detestáveis em nome dela – e depois veio a se arrepender amargamente? Existirá pior travo na alma que o do arrependimento? Eu já quis a glória do mundo – confesso, batendo no peito um mea culpa tardio. Uma coisinha besta e à toa, insignificante e tola. Mas quis. Talvez você que me lê, também já tenha flertado com esta ilusão que nos pega pelo desejo de ser reconhecido e valorizado. Vaidade das vaidades. Por quê? – pergunto agora, do alto da minha precária sabedoria. E faço uma outra pergunta: para quê?

Michael Jackson a quis e a teve. Ninguém a mereceu tanto quanto ele. É que ela foi feita para ele e vice-versa. Era um casamento perfeito de glórias mútuas, sem acordos de nenhuma das partes. Comunhão total de talentos. Não dá para entender Michael Jackson sem esta glória, que é brilho in natura – a glória em seu estado mais puro, elevada à milésima potência pela jactância da genialidade, a dança hipnotizadora, a imagem incandescente andando para trás.

Todos nós já nos olhamos no espelho, um dia, e nos vimos em algum palco imaginário, brilhando, brilhando… Fomos, em algum momento, tocados pelo desejo do sucesso e da fama. Ah, que gloriazinha foi essa que bafejou perto de nós um sopro de pretensiosa esperança? E o que fizemos para alcançá-la? Trabalhamos conscientes da nossa meta?

Então, para driblar o desejo de glória – tipo a fábula onde a raposa diz que as uvas estão verdes… –, tento um atalho humanístico, onde viceja uma filosofia ajuizada. É o abraço à glória do apagamento, da humildade e do escondimento. Aquele brilho nada opaco de quem opera uma máquina durante muitas horas por dia, numa linha de montagem mecânica e repetitiva. Que acaba em LER.

Sabe aquela gloriazinha oculta da vida diária, sem o menor glamour, de pegar o ônibus no mesmo ponto toda manhã; da mulher que tem de fazer o arroz e o feijão todos os dias? Bilhões de protagonistas anônimos vivem o sem graça da rotina desgastante, o aplauso solitário, as atitudes e apresentações que ninguém vê, pautadas por um desempenho que exige responsabilidade, honra, dignidade. E, não raro, talento.  Eu amo esta glória, ela existe para todos nós, pobres mortais.

Quando penso nos santos, nos de vida monástica, meu coração se enche de um fogo lindo. Mas deve ser porque eu não estou lá. Não sei se aguentaria. Nós, cidadãos do mundo, não servimos para a vida conventual, ou para sermos eremitas. Contudo, cada um, no seu posto, na exata posição em que se encontra agora, está realizando algo de grandioso. Há tantos, neste momento, fazendo algo importante e talvez estejam realizando muito mais, guardadas as devidas proporções, do que os bem intencionados em seu desespero de estar em evidência a qualquer custo, em busca da fama, do sucesso e da glória.

Do ponto de vista estritamente matemático, o que é a glória do mundo? Números, cifrões, porcentagens, lucros? Ó formiguinha cortadeira. Ó formiguinha que transporta a folhinha às costas e a leva até o lugar onde o alimento é armazenado. É a glória da natureza. A cigarra canta e folga durante o verão, inebriada pelo próprio canto. Reza a fábula que, chegado o inverno, vai bater à porta da formiga, pedindo comida e abrigo. E se a formiga não estiver contaminada por alguma outra glória besta, abrirá a porta e partilhará o seu pão.

A glória do mundo cega e mata. Matou Michael Jackson. E continuará matando quantos incautos dela se aproximarem e se servirem, sem a necessária prudência. Não se brinca com ela. Os efeitos podem ser catastróficos. Procuraram a causa mortis do rei do pop. Pois eu vos digo, sem titubear: foi a glória do mundo. Médicos, legistas, parentes, amigos, legião de fãs, eis o laudo fatal: foi a glória do mundo. Ela é poderosa e asfixiante. Causa parada cardíaca. Já ceifou vidas preciosas, talentos maravilhosos, de forma impiedosa, lenta ou subitamente, de noite ou à luz do dia, ela tem apagado para sempre o brilho criado à sua imagem.

Ó, meu Deus, livrai-nos da glória do mundo. Prefiro não tê-la. Vai um poema à la Vinícius? Se não tê-la, como sabê-la? Melhor passar ao largo desta dama perigosa, mortífera, com um canto de sereia que nos obriga a amarrarmo-nos a um mastro por dia. Ela arranca do peito o coração e do espírito a fé. Aí, ficamos vazios e cheios de um vácuo profundo. Melhor deixar que a glória passe de levinho, bafeje nossa face e nos deixe ao menos sentir seu hálito – mera curiosidade; que nos acene à distância, aliciadora e provocante, malogrando o seu intento. Seja ela a tentação; nós, a resistência.

Feliz de quem resiste à glória do mundo. Este é o sábio dos sábios. Este terá longevidade e vida farta. Ninguém se iluda com as luzes feéricas que piscam ao longe. “Ah! Se eu pudesse estar lá!…” – suspira uma multidão deslumbrada.  Não, não queiram espiar a sala desta glória. Feliz de quem consegue conviver com ela, sem ser esmagado pelo seu peso brutal. Bem-aventurados os que nela encontram sabedoria.

“Sic transit gloria mundi” – assim passa a glória do mundo. Ou seja, a glória do mundo é passageira. Enfim, se você está mesmo obcecado por ela, tenha cuidado. Prepare-se. Tanto para alcançar tudo o que ela pode lhe dar e para tudo o que ela pode lhe tirar.

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