Cheiro de almíscar, sabor de absinto

Viver vive-se vivendo (36)

Era um canteiro de margaridinhas. Parece-me que eram. No entanto, o mais verdadeiro, talvez, seria dizer tenham sido flores, apenas um canteiro de flores. As coisas belas não precisam de nome. Essa, com certeza, foi uma das muitas moralizações de minha vida: o nome das coisas, de sentimentos, das pessoas, o nome das coisas do coração. Nominar o que vi, o que senti, o amor vivido, a pessoa amada, nominar o soluço da separação, a saudade, ausências, nominar o vazio de tantas coisas sempre e sempre nominadas, necessariamente nominadas – eis a maldição.

Mas era um canteiro de flores. De margaridinhas. Num corredor estreito. Corredor de casinha pobre. Não sei por quê – ou sei? – sendo tão pobres aquele lugar, aquele tempo, aquelas pessoas, havia canteiro de flores, o jardim, cheiro de feijão, sons de gemidos de amor e de descargas de privadas, toscas privadas de louças trincadas, quase escondidas dentro de banheiros ainda mais toscos. Tudo parecia tosco. Até o amor.

O corredor era o túnel de mistérios e de segredos, de todos eles, segredos e mistérios. Não era preciso percorrê-lo para descobrir todo aquele maravilhamento. Tudo estava lá. Bastava ficar. Havia, ao lado do canteiro de margaridinhas, um ranchinho coberto de telhas esverdeadas de bolor. E, pendurada nas paredes esburacadas, a rede onde, naquela tarde epifânica, eu me deitei para brincar de “balança-balança-vamos-todos-balançar”. E, então, a amiguinha, vizinha nossa, se aconchegou em mim, o sexo dela ajustando-se ao meu, sem que ela e eu soubéssemos o que estava acontecendo, o que havia de tão vivo em nossos corpos. Eu tinha seis anos.

E, naquela rede, o vento soprou, o tempo agiu, os deuses criaram. E eu vi minha carne crescer de encantamento diante da magia feminina, meus pulmões se encheram de um cheiro que – até hoje não sei – se de almíscar, se de absinto. Acho que de absinto, pois foi doçura que – depois de conhecida – se transformou em dor de ausência, em desejo não realizado, em sonho sem fim.

Ora, não sei se almíscar e absinto também têm sons. Sei, apenas, que, naquele corredor tão estreito, o mundo e a vida aconteciam através de janelas e de um muro escuro e interditado, muro interditante. Ultrapassar o muro era a grande aventura, mas triste e decepcionante. Dolorido – mas nutritivo e despertador de querências – era ter coragem de ouvir os sons vindos das janelas abertas para o pequenino corredor. Na rede, ao entardecer, a dor acontecia ao som de melancólicos noturnos de Chopin, que os dedos de Leninha – irmã mais velha – parecia destilar como se fossem cantos fúnebres, cultos permanentes a outra irmã morta, história de tragédias sem fim. Daquela rede e naquele corredor, conheci, portanto, uma janela através da qual fluíam sons de morte e de funerais, sons com gosto de absinto.

De almíscar, o gosto do som vinha da janela do quarto de meus pais. Eram risos e risadas, que eu não entendia quando misturados aos soluços de Chopin nos dedos de minha irmã ou aos soluços de minha irmã ao tocar, com os dedos, a alma soturna de Chopin. Quase sempre eu tinha a tentação de pedir que minha mãe e meu pai – nos risos e risadas de seus amores – se calassem diante da dor de minha irmã e de Chopin. Mas eu percebi – e rendi graças – que meus pais matavam suas dores no encontro de seus amores. Neles, nos meus pais, morrer era viver.

E, ao lado do canteiro de margaridinhas, havia o muro. Ultrapassá-lo era escapar do Paraíso, fugir do Éden. Naquele corredor, eu me sentia fruto pendurado no galho da árvore nutriente, criança sugando seio de mãe, feto no útero criador, filho de Deus, herdeiro dos céus, o cativo de ninho aconchegante. Mas havia o muro. O calor da menininha me despertara para além do muro. E as janelas de meus pais estavam além do muro. E, no corredor estreito, tudo o que parecia existir e que sufocava e que entristecia eram sons de Chopin, sons de morte, de luto, de tristeza. Cadê as margardinhas, cadê?

Pulei o muro. E vi dona Rosa, a dona do Hotel Lago, homens e mulheres com alegrias medrosas, clandestinas. Vi luvas de plásticos, afuniladas, úmidas de líquidos densos, espalhadas ao lado de outras janelas, janelas de hotel: “não toque nisso, são camisinhas de Vênus” – Moacir Boquinha me falou¸ o bom Moacir, silencioso servidor daquele mundo além que pulei.

Boba, catando camisinhas-de-Vênus infladas de sêmen desperdiçado, cantarolando cantigas de roda, vestida de chita e com pés no chão – lá estava a menininha, a vizinha, a princesa que me acolheu quando, audacioso e valente, pulei o muro que me mantinha cativo nas delícias daquele corredor encantado por um canteiro de margaridinhas, por janelas pulsantes de sons e de cheiros, de dores e de amores, de risos e de prantos.

Foi quando fui. E brincamos de curar dodói: eu, médico; ela, Cidinha, a paciente.

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