Morte e mercado

Ainda não enterraram Michael Jackson. Mas ele continua sendo um produto rentável. Fico perguntando-me se ainda existiriam a morte e os mortos. A impressão é de que estejam soterrados pelo imediatismo de tempos apenas velozes. O prazer imediato, o hedonismo acelerado, o pragmatismo sem reflexão parecem ter sido vencedores. Morrer é, diante do mercado, uma idéia de mau gosto. Se a felicidade é algo concreto – do aqui e do agora, comprável com cartão de crédito – o que pode haver de mais inoportuno do que a morte? E quem há de mais incômodo do que um morto? É alguém que estragou a festa. E que atrapalha e que não tem mais importância. Pois morto não faz compras. De Michael Jackson, aproveitam-se o que sobrou de virtual.

É, porém, engano. Pois – guardados no silêncio da alma coletiva – o culto aos mortos e o respeito à morte palpitam. Mudam as formas, permanece a reverência. Desde os povos primitivos, a morte e os mortos são realidades impossíveis de ser ignoradas. O percurso é longo. A humanidade preserva monumentos arquitetônicos deslumbrantes que, na realidade, são templos aos mortos, à morte. E rituais que se revestem de magia, num misto de pranto e alegria, de flores e de lágrimas, de cantos e de orações.

Da chamada “morte domesticada” da Idade Média, à “morte romântica”, chegando à “morte interdita” de nossos tempos, não há como fugir à presença do mistério e de formas religiosas. A própria solidão do morto – tornado ser mais individualizado do que social – não o liberta da sua dimensão comunitária, da família, dos entes queridos. Mesmo quando a modernidade insiste na valorização quase exclusivista da pessoa – do nascimento à morte – ela é um ser social. A morte não é apenas de cada um. É de todos. Pois quem morre deixa-se para os outros e leva um pouco de cada um.

Os povos mais cultos são os que mais reverenciam seus mortos. Pois cultura tem um pré-requisito fundamental: a memória. Nossos mortos são a memória que permanece. Mesmo que em forma de saudade, de dor, de ausência. E basta perguntar-lhes que eles respondem: em lições esquecidas, em experiências vividas, em testemunhos deixados. Que adulto – na orfandade de pais que se foram – não se pergunta diante de dificuldades e problemas: meus pais, em meu lugar, fariam o quê, como? A ancestralidade permanece viva por ser memória. Nossos mortos são nossa memória. Por mais que se insista na particularização da morte, temos, nela, uma percepção coletiva de destino.

Mais do que por outros acontecimentos, a história humana talvez pudesse ser escrita a partir dos rituais e cultos aos mortos. Nenhum sistema ideológico, econômico, nenhuma ordem política aboliu ou anulou a reverência humana diante da morte. Alteram-se formas, mudam-se exteriores – mas permanece a intuição de verdades definitivas, do absoluto do qual não se foge, do fim comum, do mistério ao qual todas as civilizações se rendem: o inevitável da morte. Pode-se não mais temê-la, nem respeitá-la, dessacralizando-a até; pode-se vê-la como algo apenas aborrecido, que atrapalha a festa do cotidiano, pode-se até ganhar dinheiro com o morto, mas a morte é inevitável.

O incrível é que – manipuladas e instrumentalizadas – pessoas não se dêem conta de que, em vez de romper, apenas substituíram a ordem do sagrado. Saem filosofias, crenças milenares, saem mitos, dando espaço a superstições, manias, horóscopos, tarôs, búzios, seitas. Templos e cemitérios apenas mudaram os nomes: bolsas de valores, spas, casas de espetáculos.

É preciso sepultar o corpo de Michael Jackson. E, se ainda fizéssemos reflexões, uma das mais honestas seria a de apenas permitir que ele viva como memória, essa dimensão definitiva. Os mortos vivem mais do que os vivos. Bom dia.

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