O contágio pelo belo

BeloRegredimos culturalmente? Retrocedemos civilizatoriamente? Lembremo-nos, então, pelo menos do ano de 1899 quando Piracicaba tinha apenas 20 mil habitantes e era a terceira cidade do interior Estado de São Paulo, superada apenas por Campinas e Sorocaba, sem contar Santos, cidade litorânea. A fama de Piracicaba como cidade bela, progressista, culta, o Ateneo, corria o Brasil. Algumas décadas antes, em 1.860, o Barão de Tschuldi, diplomata suíço e viajor pelo Brasil, escrevia, de nossa cidade, “jamais ter visto em parte alguma do Brasil verde tão substancial e exuberante”.

No final do século 19, Piracicaba já dera, ao Brasil, o ituano Prudente de Moraes, o Pacificador, primeiro presidente civil da República. Um outro ituano, mestre Tristão Mariano, ensinava música, criava escola, promovia saraus. E a cidadezinha de 20 mil habitantes, que vira a morte de Almeida Junior, chorava ao som dos 50 pianos que havia entre as famílias piracicabanas. Sim, 50 pianos, em 1899. E bandas de música e teatro.

Os Irmãos Losano encantaram o Brasil com sua arte musical, a criação do primeiro conjunto de Canto Orfeônico. Surgiu uma orquestra sinfônica, surgiram conservatórios musicais, a sociedade de cultura artística, a universidade popular, escolas se tornaram famosas e, hoje, temos ainda viva a grande obra de Ernst Mahle, a Escola de Música. Somos descendentes de artistas, de poetas, de pintores, de intelectuais que encantaram o Brasil e plantaram sementes de cultura e civilidade. Nos 1910/20, tornaram-se famosos os saraus e encontros promovidos por Lydia de Rezende, filha do Barão de Rezende, que congregava intelectuais e artistas do país para encontros em sua residência fidalga. O escritor Coelho Neto – um dos mais admirados à sua época – disse ser, Lydia de Rezende, o símbolo da mulher brasileira. Ela, uma piracicabana.

Será que algum vereador que irá votar essa famigerada alteração na Lei do Silêncio sabe disso, será que conhece a história de sua terra, tendo noção da herança cultural e artística que nos foi deixada? Ou aquele que votar a favor não será apenas um arrivista a mais, talvez um pobre ignorante de nossas coisas e de nossa gente, abrutalhado pela onda de interesses rasteiros, de politicagens e clientelismos? Será que ouviram falar de Leandro Guerrini, de Carlos Brasiliense, de Newton de Mello, de Osório de Souza, de Olênio Veiga, de Benedito Dutra Teixeira, de Dirce Rodrigues e tantos outros que espalharam música pelo ar, que adoçaram a nossa terra de harmonia e de serenidade? Ou eles ouvem apenas os chamados DJs de rádios enlouquecidas, ou berreiros de pastores que, falando em nome de um deus mercenário, urram como os que gemem nos infernos, lugar de “ranger de dentes”?

Se o barulho causa doenças na alma por contágio e por contaminação, o belo também contagia. E é essa a opção que Piracicaba precisa voltar a fazer com urgência cada vez mais premente: pelo belo, pelo comunitário, pelo bom, pelo bem, pela dignidade. No seu livro, “O Idiota”, Dostoievsky já nos deixara o seu legado profético: “O belo salvará o mundo.” E não há outra saída, pois o belo contagia, o belo contamina, o belo se espalha por osmose, da mesma forma como o ódio, o horror, os ruídos enlouquecedores. Qual a opção dos senhores vereadores?

Piracicaba tem, sim, que estar atenta e cobrar deles, em nome da nossa ancestralidade cultural e artística, de um estilo de vida e de uma especialíssima maneira de se construir uma cidade que nos veio dos antepassados. Que se façam, nesta votação, duas listas para se distribuir ao povo: a lista branca, dos vereadores lúcidos e sensíveis que votarem pelo belo; uma lista negra, emporcalhada, de vereadores que escolherem a feiúra, o horror, a parceria com interesses menores de falsos profetas e de mercenários da fé. Já temos a lista da Ficha Suja. Que Piracicaba faça a sua, também.

O barulho, há que se insistir, é pernicioso, destruindo sensibilidades e prejudicando também a saúde do corpo. Essa cultura do ruído – de rádios, de tevês, de igrejas ditas neopentecostais, de bandas, de carros de som – contamina, pois cultura é sedimentação, acúmulo do dia a dia. Vivi essa experiência – e já a contei – com uma jovenzinha que trabalhava para mim como doméstica. Quase nunca nos falávamos, pois ela ficava silenciosa, como que absorta. E eu, trabalhando em meu cantinho, escrevendo, a música que me acompanha. Certa feita, precisando de uma carona do noivo dela que viera buscá-la, entrei no carro e ouvi o som mavioso de Vivaldi. Tive uma estranheza alegre. Perguntei se a música vinha de rádio ou de disco. O moço, noivo de minha jovem empregada, explicou: “É cd. Ela gosta tanto das músicas que o senhor ouve enquanto trabalha que resolvemos colecionar discos com música clássica.” Pelos ouvidos, a alma daqueles moços se engalanou. Pelos ouvidos, a Câmara de Vereadores está pretendendo fazer com que a alma dos piracicabanos se brutalize.

Vereadores de 1900 haveriam de comportar-se com decência, sensibilidade e respeito à vocação piracicabana pelo belo. Agora, conforme a votação dessa maléfica alteração da Lei do Silêncio, que se faça a lista da Ficha Suja da poluição sonora. Lista que, aliás, já foi assinada primeiramente na Prefeitura. Bom dia.

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