Uma flauta, um violão

Flauta e violãoA mágica da flauta estava com o Miguel Sansígolo Filho. E a do violão, com Bueninho. Tudo aconteceu numa num entardecer de abril, no longínquo 1981.

Naquela Arapuca que nunca mais voltou a ser, éramos poucos: Paulo Pecorari, um dos donos; Miguel e Bueninho; minha filha Patrícia, ainda adolescente, e eu. Houve magia e nem me lembrava mais de tê-la tentado narrar, contar. Mas, ainda ontem, o Miguel Sansígolo me enviou um texto que, a respeito daquelas horas envolventes, escrevi no meu velho mas não tão saudoso O Diário. Foi no dia 26 de abril de 1981. E me lembro ter sido véspera da viagem de estudos que a adolescente faria aos Estados Unidos. E de uma saudade que já me chegava antes mesmo da despedida.

Permito-me transcrever, como se fosse uma cobrança para mim mesmo, num movimento interior nostálgico que o Miguel me despertou:

“E, então, quando a cidade começava a dormir e as ruas já ficavam desertas de gente e de automóveis, vi os dois moços ausentarem-se do mundo. Um deles dedilhava o violão e o outro, com dedos ágeis e lábios firmes, tirava uma ternura tão lânguida de sua flauta transversal que parecia estar tentando buscá-la na própria alma da melodia ou, então, jogar-se com toda a sua alma em cada acorde de canção. Em silêncio, como outro. Um estranho silêncio que parecia ser o de alguém que se senta à beira da estrada, vendo-a larga e sem fim, não sabendo, porém, onde começou e onde terminará. Um ponto de estrada em que o viandante pára e senta, recusando-se a prosseguir ou a voltar, vendo apenas o caminho que já percorreu e o outro que tem pela frente. Um ponto de estrada onde o principal deixou de ser a própria estrada, mas a paisagem que a ladeia, que se estende para campos mais amplos, onde árvores, verdes, todos os tons da terra vão-se misturando e, batidos de luz, acabam-se confundindo com o azul de um horizonte que se vai dourando pelo poente que chega.

Os dois moços não estavam no mundo, mas na beira e à margem daquela estrada imaginária, onde também fiquei e onde ficou o outro homem, todos nós parados como se tivéssemos que fazer daquele momento, envolvidos por aqueles sons, um descanso que não se repetiria mais porque não foi buscado ou procurado, nem mesmo planejado, mas que simplesmente aconteceu. E a flauta do moço se foi transformando em imagens, em tempo e em espaço, cada canção fazendo rostos de pessoas, épocas e lugares. Um encontro que houve em algum tempo e em algum lugar. Uma despedida e uma descoberta, presença e ausência, em algum ponto da estrada que já fora percorrida por eles e também por mim.

Foi um silêncio de sacrário, enquanto a noite se foi alongando e as luzes dos apartamentos, mais ao longe, foram-se apagando uma a uma, até que se fez a escuridão e se teve certeza de que a cidade deixou de se mover e os homens dormiram ou estavam tentando dormir. A voz da adolescente me perguntou, quase num sussurro, na emoção do que ouvia, dos sons que a flauta ia tirando da alma do tempo e do mundo, embalada pela plangência do violão: “Como tudo isso se perdeu ?” Ela, cuja estrada estava apenas começando naquele ponto em que os adultos ficaram descansando, percebera que algo se perdera e que fôra uma perda empobrecedora. “Como tudo isso perdeu ?” – foi a pergunta da quase menina. E o seu espanto talvez fosse um sentimento tão melancólico como se a sensação de perplexidade que me dominou quando, então, descobri que aquele momento, aquela paz, aqueles sons eram totalmente nossos e que nós, os moços que tocavam, o outro homem e eu, havíamos perdido em alguma parte do caminho. “Isso não se perdeu, filha. Nós é que o perdemos.”

O moço guardou a flauta no estojo, o violão silenciou. “Vamos embora, amanhã temos que trabalhar”. E se foram. E eu também fui. A estrada continuava. À sua margem, ficou apenas o outro homem silencioso, o mais sábio talvez. E o sonho de algumas horas acabou. Bom dia.”

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