“In Extremis” (109) – Conversando com o vírus

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(imagem de Prawny, por Pixabay)

Tenho, seriamente, pensado em escrever com preâmbulos, parênteses e notas de rodapé. Sinto, cada vez mais, necessidade de explicar-me. E com uma sensação de culpa, de atrevimento, de teimosia, sei lá como dizer. Percebo fazer-me compreender apenas, talvez, por um que outro dos meus mais antigos amigos, bem antigos. Pois são esses poucos que, por exemplo, se acostumaram às conversas mais particulares que cultivo. Com Deus, algumas delas. E com flores. E com pedras.

Aliás, certa feita, um grupinho de crianças – de quando pequeninos, ainda, eram filhos de vizinhos meus – veio espiar-me, a alguns metros de onde moro. Curioso e querendo brincar com elas, perguntei-lhes o que buscavam. Se queriam doces, se conversar. Uma delas, aproximando-se, falou-me: “A gente queria conhecer o homem que conversa com as pedras.” Envaideci-me. Ou é “toda gente” que conversa com pedras? Ah! esses “a gente”, “toda gente”, “da gente” – quanto isso quer dizer! Pode ser todo mundo ou dizer respeito a ninguém. É um coletivo e um indefinido. Serve para identificar e, também, para ocultar, tapear. No Brasil, a propósito: a culpa pelo caos, de quem é? Os mais conscientes ou honestos haverão de dizer: “da gente”, de “toda gente”, de “toda a gente”. Os menos responsáveis dirão: “A gente, ora”. Ou seja: ninguém. E “la nave va”. Naufragando.

E eis que, sem querer, abri um parêntese no texto. Retorno, pois, ao assunto, o das minhas conversas, agora com o vírus, o tal covid-19. Ora, converso, sim, com tudo e com todos. Pois, não à toa, sou dos privilegiados que liam Monteiro Lobato, Irmãos Grimm, Lewis Carrol, Mark Twain, tantos e tantos que formam uma enciclopédia de maravilhas. Com seus personagens sedutores: Emília, Dona Benta, Visconde de Sabugosa, Alice, Chapeuzinho Vermelho, o Lobo Mau… Em resumo: sou do tempo em que os bichos falavam. E quando, portanto, o mundo era mais amistoso.

Pois bem. Decidi conversar com o vírus, por que não? Não me aproximei muito, mas já lhe fui questionando: “O que você está pretendendo, ô, cara? Não percebe o estrago que vem causando?”

Irritado, pretensioso, ameaçador, ele respondeu: “E isso é pergunta que se faça? Estou fazendo justiça. Ou vingança, como vocês queiram. Ou vocês pensam que, impunemente, continuarão destruindo a Mãe Terra? Até quando vocês, humanos, pensarão ser os reis, os donos de tudo? Todos nós, seres vivos, somos apenas hóspedes, simples criaturas. Estou, pois, agindo em legítima defesa da natureza. Apenas isso.

Quis sair em defesa da espécie humana. Mas o vírus não mo permitiu. Continuou:

“E não me digam de amor à natureza, de amarem-se uns aos outros. Quem ama cuida. Vocês apenas se ajudam – e não são todos! – quando do desespero coletivo. E é o que estão fazendo agora que eu reagi contra a devastação. Antes de mim, quantos de vocês só pensaram em lucro, em dinheiro, em poder? Eu estava quietinho em meu canto. Por que me provocaram?”

Tentei dizer-lhe das tantas vítimas inocentes, gente de todos os níveis sociais, crianças, jovens. Ele irritou-se ainda mais, olhando-me com fúria:

“O Mestre já lhes havia dito e vocês fingiram não ouvir: Hipócritas, sepulcros caiados, raça de víboras! E quantos de vocês pregam que os inocentes pagarão pelos pecadores? Nós, inocentes – as águas, os rios, as matas, os bichos, o ar, o solo – estamos, há séculos, pagando pelas maldades de vocês. Estamos, apenas, reagindo em legítima defesa.”

Calei-me.

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