“In Extremis” (129) – Fantasmas da aldeia

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(imagem: Mojpe, por Pixabay)

Os espanhóis são cautelosos. “No creo en las brujas, pero que las hay, las hay.” Em bruxas, eles dizem não crer. Mas sabem que existem. Povo sábio, creio eu. E confesso não discordar. Pois, ao longo da vida, já vi – “com esses olhos que a terra irá comer” – coisas que dizíamos ser do arco da velha.

Superstições, lá não as tenho muitas. Acho. No entanto e como se sabe, “cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.” Em mim, em cada chamada “Sexta Feira da Paixão” fico mais atento. Vivi a experiência, ainda adolescente. Meus pais queriam que os filhos os acompanhassem à vigília do Jesus-Morto. Bati o pé, não fui. Fiquei sozinho em casa. No meio da tarde, as nuvens escureceram, trovões começaram a ribombar. E, então, entre relâmpagos, um raio estalou perto da casa. Tremi de medo. Seria um castigo dos céus? Tenha sido o que fosse, o fato é que, àquelas sextas-feiras, fico bem quietinho. Ainda hoje.

E Júlio Bruhns? Ele foi uma das mais fascinantes personagens populares de Piracicaba. Era sobrinho-neto do admirável Thomas Mann, Prêmio Nobel de Literatura, cuja mãe nascera em nossa cidade. Júlio vestia-se descuidadamente, sempre, porém, de terno. De quando em quando, passeava pela cidade com a mulher, também Júlia. E, com eles, um cachorro horroroso. Os cabelos de Júlia chegavam-lhe à cintura. E Júlio sofria de um mal cujo nome científico não me recordo, dizia-se que “doença de São Guido”. Ele se estremecia todo e os que não o conheciam fugiam dele.

Muito próximo fui do Júlio Bruhns, amigo de meus pais. Quase todas as noites, esperava-o passar por nossa rua, pontualmente às 20h. E lá me ia, eu, acompanhando-o em sua peregrinação. Do centro, íamos até a Paulista. Descíamos, chegávamos, depois, à Rua do Porto. Voltávamos e as lições de Júlio enriqueciam-me. A sua era cultura imensa. Fora revisor do “Estadão”, falava seis ou sete línguas. Eu me deslumbrava ao ouvi-lo falar em árabe com meu pai. E em japonês, com o também inesquecível Tanaka. Mas não vou contar tudo o que vi e ouvi. Ao lado do Pedro Petrocelli, do Posto Petrocelli, vi Júlio Bruhns atirar um molho de chaves contra a parede e… Bem, as chaves ficaram coladas nos tijolos. “No creo en las brujas…”

Pois bem. A moçada – que tenta profanar a Rua do Porto – não sabe o risco que corre. Piracicaba tem fantasmas formidáveis que exigem respeito. Além daquela região, lembro-me da Igreja de São Benedito. O ex-prefeito Adilson Maluf pode testemunhar. Ele tem Benedito no nome. E, quando foi eleito, sua generosa mamãezinha implorou-lhe: “Não mexa com a Igreja do São Benedito”. Adilson não mexeu. Pois, a cidade não se esquecia de que Luciano Guidotti morrera de repente; Salgot Castillon tivera o mandato cassado pelos milicos; Cássio Padovani falecera logo após assumir o cargo. A cidade cochichava: eles tinham planos de mexer com a igreja.

Na região da Rua do Porto, há  mistérios impressionantes. Pode-se perceber, por exemplo, como é sombria a área próxima à antiga fábrica de tecidos. Por lá, andava o “homem da capa” preta, que seduzia tecelãs. O cemitério dos índios exala transpiração de almas atormentadas. As pedras do Engenho guardam o suor, o sangue, as lágrimas dos pretos escravizados. Na curva do rio, Nossa Senhora dos Prazeres avisou que “esta nunca será uma cidade grande”.  A Inhala Seca ainda aguarda junto à pedreira. Nhô Lica perambula por lá.

Aposto: essa moçada, por alguns dias, terá dor de barriga. No mínimo. E fantasmas irão, à noite, puxar-lhes as pernas. Tomara. “Brujas las hay, las hay.”

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