“In Extremis” (198) – A bênção da saudade

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(imagem: pexels/pixabay)

Por muito e muito tempo, ao longo da vida, relacionei saudade – a palavra e o sentimento – à dor, à ausência, ao que faz sofrer. Entendi, porém – ainda que devagarinho – haver algo mais. Ou muito mais. E há. Diferentemente do que se ensinava àqueles tempos que alguns dizem ser remotos – “in illo tempore” – não me parece verdadeiro a palavra saudade não ter definição.

Admito, sim, não tenha correspondente em outra língua. Mas alguém disse – ensinaram-me ter sido Ruy, mas não sei – que “saudade é vontade de outra vez”. E, quanto mais se me alongo em anos, concordo com isso. Pois sou possuído de vontade tanta de outras tantas vezes que me envaideço de poder, inspirado em Neruda, dizer-me a mim mesmo: “Confesso que vivi”. E acendo minhas velinhas, rendendo graças ao Mistério da Criação.

Que ser humano haveria que não conviva com alguma saudade? Lembro-me do que ouvi do nosso admirável Thales de Andrade, escritor e professor. Ele foi, na verdade, o pai da literatura infantil brasileira, o pioneiro, antes de Monteiro Lobato, seu amigo. Thales ia lançar o livro “Saudade”, a obra-prima. E o próprio Monteiro Lobato sugerira-lhe mudar o título pois, segundo pensava, sendo um livro infantil, crianças não entenderiam o título. Thales, professor primário, consultou seus aluninhos: “Quem tem saudade?” E as crianças alvoroçaram-se: saudade do doce da avó, saudade das férias na casa de tios, saudade de montar cavalo no sítio. E, do fundo da sala de aula, chorando, um garoto falou: saudade da mãe que tinha morrido.

Saudade pode doer. E dói muito. Mesmo assim, fôssemos sábios, haveríamos de entender que, doendo, a saudade de alguém nos diz de quanto amamos quem se foi. De como foi bom amar. Pois ninguém carrega saudade do ruim, do amargo, do atroz. Logo, saudade, quem não a tem? Dizendo-o por mim, digo tê-las como companheiras de vida. E sinto-as, agora, como bênção que a Vida me deu. Saudade de pais, de tios, de amigos, de familiares. Saudade de mulheres amadas. E, também, nostalgia, que esta é, digamos, saudade de lugares, de tempos vividos.

Pela vida toda, recusei-me à tolice e tentação de ser alguém saudoso. Pois o saudosismo é essa loucura de desejar o retorno do passado, de querer vivê-lo no presente. No entanto, aprendi a respeitar e dignificar aquilo que aconteceu de bom, conquistas fundamentais. Confúcio deixou-nos lições admiráveis. Uma delas: “Se um homem continuar a apreciar seu conhecimento antigo ao mesmo tempo em que continuamente adquire conhecimento novo, ele poderá se tornar um professor para os outros.” E quanto e como – nessa hora em que a própria vida parece descartável – estamos carentes de mestres!

E que tristeza constatar como a semeadura de ódios dos últimos quatro anos já produz frutos amargos. Para vergonha e constrangimento de todo um povo, o mundo acompanhou os horrores da barbárie que o fanatismo político produziu. Aquele execrável ex-capitão que conseguiu chegar ao poder neste país, conseguiu despertar em uma minoria ressentida aquilo que de mais condenável há na alma humana: o ódio. Ódios ferozes. Por tudo e por todos. Seguidores perigosos de uma cartilha que o ex-militar tóxico anunciara sem hesitação: “Vim para destruir.”

Este país e este povo, no entanto, reagem com admirável consciência histórica. Já fomos vítimas de ditadores e de ditaduras. Acima de tudo, porém, já sabemos o que sejam paz, harmonia, capacidade de construir. O Brasil reage por ter saudade daquilo que vivemos e que fomos num passado nem tão distante. A saudade é uma bênção sobre nós.

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