“In Extremis” (20) – Madre Rachel Carnevalli

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(imagem: reprodução Pixabai)

Hóspede na Terra, tenho feito viagens memoráveis. E uma das mais fascinantes aventuras é a de conhecer pessoas. Assemelha-se a um caleidoscópio de variedades, a pluralidade  que, ao fim, revela, ao mesmo tempo, um céu de chumbo, um amanhecer límpido, borrão de nuvens escuras e um arco-íris indefinível. Terra, a hospedaria sem preconceitos, abrigando santos e bandidos, bons e maus, belos e feios –  no mesmo chão.

Um dos mais fascinantes e límpidos seres humanos que, nessa hospedaria, conheci foi uma freira irresistível em seus encantos, Madre Rachel Carnevalli. Jamais direi ter sido, ela, uma santa ou um anjo, pois, se o fizesse, apenas diria de abstrações. Madre Rachel foi inteira e lindamente humana. A fonte de sua fé era a alegria, como que um louvor permanente à vida, à sua opção existencial. E à Maria. Os que a conheceram eram, de imediato, imantados por ondas de um amor envolvente que, dela, transpirava.

Não apenas este escriba – mas milhares de jovens, de mulheres e de homens – podem testemunhar a doçura que Rachel Carnevalli transudava no Seminário da Nova Suíça. Testemunhas somos, também, de um tempo em que se acreditou em uma outra “cristianização do mundo”. Mais alegre, esperançosa, rompedora de preconceitos e de tabus – os chamados “anos dourados”. Ao me lembrar disso, acredito Madre Rachel possa ser vista como flor especial daquela nova primavera. O sorriso dela, os abraços maternais, a vocação para servir e acolher, a nossa certeza de seu amor ser de e para todos, mas exclusivo para cada um de nós.

O Movimento de Cursilhos de Cristandade foi uma explosão de fé, de esperança, de amor que mobilizou multidões, algo como uma febre, uma nova aurora. Descortinavam-se novos e mais luminosos horizontes, abertos por uma fraternidade comovedora. D. Aníger Melilo liderava aquele batalhão de leigos, de famílias, de jovens. Ele próprio se renovara, tornando-se um pastor “no mundo e para o mundo”, sem pertencer ao mundo. No segundo Cursilho, encontrei a minha primeira conversão. Primeira pelo simples fato de não haver uma só, mas muitas. Pois são muitas, também, as quedas, dúvidas, angústias. E, ainda agora, não compreendo como aquele jovem que, tolamente, se dizia ateu – um dos modismos da intelectualidade da época – recebeu aquela iluminação. Repentina, asfixiante, libertadora. Mas essa é uma outra história, uma das mais belas que me aconteceram na vida.

O fato é que o jovem convertido, ainda assustado e inquieto, foi escolhido para presidir o movimento. Madre Rachel acompanhou todos os temporais e chuvas de bênçãos que aconteceram no seu Seminário. Para mim, aquele lugar era a minha Pasárgada – invejoso da Pasárgada de Manoel Bandeira – onde eu me sentia “amigo do rei.” E Madre Rachel era a nossa mãe, a conselheira, coração e ouvidos onde desabafávamos as nossas angústias. De mim, também, ela se tornou confidente, conselheira e posso dizer que até mesmo cúmplice. Quando ela adoeceu – dar-nos-ia adeus numa segunda-feira de Carnaval – pediu-me que, com o Cursilho, eu lhe prometesse construir uma gruta com a imagem de Nossa Senhora. Prometi-lhe, comprometi-me. Mas ela se foi e, logo em seguida, tudo mudou. Até mesmo os tempos, que se tornaram novamente sombrios. Ou ainda mais sombrios do que os anteriores.

Por décadas, sofri com a promessa não cumprida, o hóspede que ficara em dívida para com a hospedaria. Não poderia ir-me também com uma dívida tão culposa. E, então, consegui fazer, em meu jardim, um lugarzinho para cumprir – ainda que não no lugar onde ela queria – o meu compromisso com Madre Rachel. Agora, olho para a imagem de Nossa Senhora entre as pedras e me sinto redimido. De certa maneira, Madre Rachel está também lá.

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