Lembranças de um velho aldeão (16) – “Onde está o menino que fui?”

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(imagem: Chiplanay / Pixabay)

Mal compreendo quem diz viver sem paixão. Como estar vivo e não se apaixonar? Talvez, não se saiba, em sua profundidade, o que seja a paixão. Não há como se falar em racionalidade. E para quê? Uma frase de notável filósofo constata: “Nada de grande no mundo foi realizado sem paixões violentas.” Pergunte-se a Jesus, morto por sua paixão. De paixão.

Ainda criança, ouvia de meus pais: “Pare com essa loucura. Tenha mais juízo.” Ora, ter juízo! Deveria, assim fosse, o coração ouvir apenas a voz das convenções, das regras, do convívio social? Há o muito além de tudo isso. A paixão é um dos mistérios que ficam guardados no interior de cada um. E que, de repente, irrompe como um vulcão aparentemente inativo. Acontece, então, a experiência humana culminante: conhecer o paraíso e o inferno.

Há quem acredite sejam, algumas paixões, doença. E incurável. Chego a concordar. Pois, ainda agora, esforço-me – sem o conseguir – para vencer uma paixão que não me abandona. Com a qual convivo desde a infância. Ainda crio fantasias, fazendo planos mirabolantes. Vejo-me, por exemplo, na alma dele, no corpo dele, no espírito dele. É como se ele fosse apenas meu e, portanto, uma paixão exclusiva. Refiro-me ao Corinthians. Sofro, mas não esmoreço.

Paixão, pois, é vida e morte, alegria e sofrimento. Pela família, por amigos, por Piracicaba. Mil paixões que, na realidade, são apenas uma com múltiplas faces. Paixão por música, pela literatura, por compositores, autores. E um deles em especial: Pablo Neruda. Ah! Neruda. Ousei ir até a casa onde ele morou, em Santiago, ver seu cantinho de escrever. Senti-me num templo. E a pergunta nunca mais me abandonou: depois de Neruda, quem há-de?

Algumas pessoas – para se inspirar – abrem um dos livros sagrados e leem o que encontram. Parece tratar-se de algo místico ou apenas supersticioso. Pois, de minha parte, faço o mesmo com um livrinho já quase desfolhando de tanto ser consultado: “Livro das Perguntas”. Dele, de Pablo Neruda. E invento que é a mim que ele me pergunta. Ainda agora, antes de iniciar a escrita, recorri ao livreto inseparável. E a indagação do poeta me atingiu: “Onde está o menino que fui?” E prosseguiu: “Segue dentro de mim ou se foi?”

Aquietei-me. E, às favas, envio a falsa humildade e o recato. Pois, envaideci de mim mesmo. Com facilidade, encontrei o menino. Ele não ficou adulto. Está comigo, dentro de mim. Aprendeu algumas coisas, mas outras, recusa-se a aceitar. Ora, a realidade não é invenção minha. Existe por aí, mas está fora da minha mente. Lá me vou, pois, tentando construir um pequeno mundo onde consiga, pelo menos, sonhar em paz. Criar meu espaço e meu tempo de viver. Apenas isso. Coexisto, mas tento não conviver.

O menino permanece em cada um de nós. Preciso é apenas não sufocá-lo, não aprisioná-lo. Pois, na realidade, fazendo-o, tornamo-nos, apenas, submissos a regras e convenções sem sentido. Por exemplo: por que usar terno e gravata sob o calor insuportável? Mais ainda: por que a gravata, aquele pedaço de pano pendurado no pescoço? São trajes herdados das chamadas “sociedades de corte”, em especial da mais sofisticada, do Rei de França, Louis XIV. No século 17.

O menino, olhando para o adulto, deve sentir-se envergonhado. Tal a ridicularia que ele vê. O menino quer contar estrelas, chupar manga sujando o rosto, quer roubar jabuticaba do vizinho. O menino devaneia: a primeira namorada, o primeiro gol, os sonhos de salvar o mundo. O menino ainda existe. Ouvir o coração da criança é mais sábio do que refletir com o cérebro de adulto.

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