Lembranças de um velho aldeão (7) – “Bênça, mãe!”

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(imagem: Prawny, por Pixabay)

Parece-me impossível, aos órfãos de mãe, não sentir saudade no dia a elas dedicado. N´alma, fica o impreenchível vazio de uma insuperável solidão.

Minha mãe chamava-se Amélia. Eu a tratava, porém, de “Dona Sarah”. Comparava-a à célebre Sarah Bernhardt, conhecida e reconhecida, àquela época, como a maior atriz de todos os tempos. Pois, ainda agora – tantas décadas após a morte de minha mãe – eu, ainda, a considero uma atriz extraordinária, eclética, capaz de, no teatro da vida, desempenhar os mais variados e complexos papéis. Dona Amélia – minha tão querida mãe, a nossa Sarah Bernhardt – conseguia rir e chorar ao mesmo tempo. Soluçar enquanto dava risadas.

Ela desconsertava-nos. Quando acreditávamos na tristeza, querendo confortá-la, ela sacudia-se em risos, como se nos tivesse enganado: “Não é nada, seus bobinhos”. E, quando e se mostrava toda alegre – o normal em seu cotidiano – lamentava-se: “Vocês não estão respeitando a minha dor.” Receio admitir, mas, para mim, minha mãe era a atriz principal de um teatro do absurdo que penso ter sido nossa casa. Ou nossa família. Ora, como foi possível tanta alegria, tanta confusão, tanta harmonia num grupo humano que convivia com dificuldades, perdas, tragédias? Se resposta há, recai nela, a mamãe.

Não posso dizer de outras pessoas, mas a orfandade de pai e mãe – quando a vida se me alonga – parece-me mais doída. A saudade aumenta, sinto-o. E, também, um sentimento estranho de fragilidade, de cansaço, de “je ne sais quoi” que se resume num apelo silencioso: “Eu quero minha mãe. Preciso de minha mãe.” E, então, quase posso jurar que ela me surge aos olhos do coração, sorrindo, sorrindo: “Tô aqui, bobinho”. E não sei se é verdade ou se ela continua brincando.

O incompreensível de tudo é que, em minhas dificuldades como homem, pergunto-me o que meu pai faria. Como agiria ele. Pois ligações filiais mais intensas eu as tive com ele. Dona Amélia, a Sarah, era como que um pronto-socorro imediato, o colo de mãe, a carícia do momento, solução para o agora. Meu pai era e foi o porto seguro, a palavra sábia, alguém com ares tímidos de um velho profeta. Tanto assim que – diante de questões mais complicadas – ela se apressava em orientar a filharada: “Vá conversar com seu pai.” E como era bom!

Pois bem. Há alguns anos, passei a entender que perdas de seres queridos podem e devem ser entendidas como desastres na vida. Foi quando descobri o significado original da palavra desastre. É o des-astro, “des-astrum” latino, o sem estrelas, sem astros, céu fechado. Cada pessoa amada que se vai, é o céu que se fecha, estrelas que se apagam: desastre. Por isso, confesso acovardar-me diante de um simples, mas estúpido, pensamento de vir a perder mais alguém. Não sei como esconder: tenho medo. E desejo, ainda mais ardentemente, abrigar-me em colo de mãe. Que desastre, não ter mãe!

Chego à conclusão de eu não ser eu mesmo. Sou o que eles, mãe e pai, me fizeram. Hábitos, costumes, lições de vida… Dona Amélia me adverte, ainda hoje, diariamente: “Vá fazer a barba. O coração é seu, mas o rosto é dos outros.” E obedeço, barbeando-me diariamente como se fosse um mandamento religioso. “Não fale comendo; levante-se diante de pessoas mais velhas; reze ao levantar e ao deitar-se, agradecendo; respeite as pessoas; não fale palavrões…”

E, à noite, o que mais me dói é pedir “bença, mãe!” E não ouvir o “Deus o abençoe, filho”. Mesmo sabendo que ela o faz no silêncio, sinto que não vale. Quero ouvir, quero ver o brilho dos olhos de Dona Amélia, o sorriso. Mas acabou. Que pena!

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