Lembranças de um velho aldeão (8) – Marilyn, lembrete diário

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Marilyn Monroe. (imagem: Richard Mcall / Pixabay)

Não há um só dia, um único dia – e diversas vezes no mesmo dia – em que Marilyn não esteja comigo. É um sorriso alucinante. Aqueles lábios, os dentes, os cabelos, os cílios, a covinha no rosto… A tentação é agoniante. E que algum mais jovem e eventual leitor entenda: não se trata de malícia, de desejo carnal. Na realidade, é um deslumbramento, algo no coração e na mente que sabe a gratidão e a saudade. Marilyn Monroe, ah! deusa pagã de uma época feita de sonhos e de esperanças.

Não consigo entender haja quem consiga viver sem paixões. Não apenas uma. Viver apaixonadamente pelas maravilhas que nos cercam, convidando-nos a apreciá-las. É próprio da natureza humana haver dores, tristezas, perdas, decepções. Saber perder, no entanto, é um aprendizado. Pois, na realidade, quanto mais se ganha mais se acaba perdendo. Até no amor. Vinicius já o confessara: “o amor é eterno enquanto dure”. Imortal é ficar na memória humana. Marilyn Monroe é imortal. Não morreu. Pois, segundo Guimarães Rosa, “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. Pelo menos, algumas. E ela também.

Marilyn parece perseguir-me. É-me impossível deixar de vê-la. Pois não há como desviar os olhos da imagem dela numa caixa rebuscada, brinde da revista Seleções Reader´s Digest, da qual fui assinante por muitos anos. Aliás, foi em Seleções – além de jornais da cidade – que aprendi a ler, criancinha ainda, sentado nos joelhos de meu pai. Revistas, livros, música, muita música formaram o universo da família. E a maldição do barulho de buzinas e de motores de veículos ainda não infernizava a vida da população. Os ruídos, nas ruas, eram os das carrocinhas dos entregadores de leite, de pão, de carvão. E de pessoas que, andando, assobiavam ou cantavam.

Rabisco estas linhas invocando Marilyn para, na verdade, dizer de meus sustos cada vez mais intensos, perturbadores. Mais do que loucura, parece-me suicídio coletivo, lento e persistente, o que está ocorrendo. Ou conformismo de derrotados que desistiram de reagir. É como se houvesse uma submissão ao horror. Acatam e aceitam a estupidez de conflitos sem sentido, de ódios acumulados como se fossem próprios da vida, da convivência humana. Renunciou-se à beleza, à verdade, à liberdade, pilares da dignidade pessoal e da sociedade. Não confiar, não acreditar, ter o outro como inimigo – eis a vida em comunidade transformada em campo de batalha. Enquanto isso, os donos do circo se divertem. E enricam cada vez mais.

A cruel economia de mercado sem regulação revela a desumanidade de seus formuladores. Ganância sem limites, ambição revoltante, crueldade metódica compõem verdadeiras organizações transnacionais devotas do deus dinheiro. E não se diga sempre ter sido assim. Ora, é verdade: oportunistas, aproveitadores, bandidos sempre existiram. No entanto, as distorções do neoliberalismo permitiram a banalização de desrespeitos e indignidades.

Aquilo que, até poucos anos, indignava, se tornou corriqueiro. E, até mesmo, aceitável. Incrivelmente, aconteceu aquilo que Ruy Barbosa profetizara: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto…”

Naquela pequenina caixa, o sorriso exuberante de Marilyn parece ir-se-me tornando um lembrete de gratidão. Pois é como se me dissesse: “Não se esqueça. Houve um tempo em que a beleza de viver nos contagiou a todos. E eu, Marilyn, também encantei o mundo.” Foi bom. Bom demais.

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