Alessandro Penezzi e suas memórias piracicabanas

Alessandro-Penezzi

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O violonista Alessandro Penezzi tem hoje uma carreira internacional. Faz concertos em vários países, grava discos com Yamandu Costa e outras feras e é reconhecido no meio musical como grande talento. Nessa entrevista exclusiva, ele lembra o início de tudo, a infância em Piracicaba, os saraus em família, as aulas do professor Sérgio Belluco, a amizade com os integrantes do grupo Luar do Samba, a vida no Bairro Alto. O artista se deixa levar pela emoção e admite: “Nunca fui tão fundo nas minhas lembranças”.

A PROVÍNCIA – Seu disco mais recente marca uma parceria com Yamandu Costa. Como foi esse encontro?

Alessandro Penezzi – Eu conheço o Yamandu desde 2002. Ele apareceu um dia no Ó do Borogodó, bar em que eu tocava em Pinheiros, com o grupo Choro Rasgado.  Yamandu ficou lá a noite toda assistindo a gente tocar. No intervalo fui falar com ele, e foi como reencontrar um amigo de longa data. A gente sempre teve uma admiração musical mútua, desde o estilo de composição, técnica, gosto musical, nossas referências.

Recentemente você também gravou com Naylor Proveta e Alexandre Ribeiro. Você é um artista que gosta sempre desses encontros?

Embora eu tenha estudado e me formando em violão clássico, eu nasci no meio da seresta, do choro, e do samba. Eu sempre gostei de compartilhar com outros músicos amigos. Agora, quando se trata de músicos acima da média, ou músicos geniais como esses que você citou, a felicidade é completa.

Seu CD solo mais recente é A Dança das Cordas, de 2014. Me fale sobre ele.

Este disco foi o primeiro onde realmente eu só toquei violão, é um disco bastante solitário. Às vezes introspectivo, às vezes exaltado. Ele engloba vários gêneros musicais como choro, samba, valsa, lundu, valsa crioula, além de alguns estudos sobre aspectos técnicos do violão. Gosto muito dele, foi muito bem parido e o “obstetra“ foi o Maurício Carrilho (risos).

E as apresentações, como andam? Já tocou em quantos países?

Andam bem, graças a Deus. Este ano eu retornarei ao Gabão e aos Estados Unidos. Acredito que já trabalhei em uns 15 países.

Nos shows deste ano, você também tem parcerias, com a cantora Fabiana Cozza, o Proveta e Frederic Gassita. Como tem sido a reação das plateias?

A plateia sempre se encanta muito. Fizemos um show no Sesc Pompéia em homenagem a Dona Ivone Lara. O teatro estava lotado. A plateia vibrou bastante e, no final, se aproximou do palco pra cantar junto. Foi muito emocionante ver o resultado desse trabalho com a Fabi. Os shows com o Proveta também são de levantar a plateia. Ele tocando e improvisando é de extasiar. Com o pianista, compositor e arranjador gabonês Frederic Gassita, foi uma experiência inesquecível. O ano passado fizemos o concerto de lançamento e gravação do DVD dele em sua cidade natal Libreville, no Gabão. Um teatro gigantesco e lindo, com mais de 3 mil pessoas, incluindo o presidente do país. Além disso, contamos com a participação da Sinfônica de Londres, grandes jazzistas franceses, e o ponto máximo pra mim: um coral típico e bailarinos interpretando danças dos nativos pigmeus.

Vejo na sua agenda também que virá num encontro de seresteiros em Piracicaba no mês de agosto. Há quanto tempo não se apresenta na cidade? Qual sua expectativa?

Faz um tempinho mesmo que não toco em Pira. Digo tocar formalmente, porque vira e mexe eu estou em alguma roda na casa de algum amigo. Esse ano o encontro de seresteiros terá como uma das principais atrações o Agnaldo Rayol, em cujo DVD eu fiz duas participações. É sempre uma alegria poder tocar na nossa terra, com a música que a gente ama, e com os amigos na plateia.

Como fica o coração ao retornar à cidade em que nasceu?

 É sempre um grande prazer, uma satisfação, voltar pra casa, né? É como estar tocando na varanda da casa da minha mãe…

Como foi sua infância em Piracicaba? Foi aqui que despertou sua paixão pela música?

Minha infância foi ao lado da minha mãe, Vera, minha vó Luiza,  algumas tias (Rosa, Hélia, Rute, Neusa, Dalva, Baixinha) e uma porção de primas… A família da minha mãe, cujo sobrenome é Santos,  foi com quem convivi praticamente toda minha infância e adolescência. Com a família do meu pai, os Penezzi, tive muito pouco contato. Com minha avó paterna, a Ditinha Penezzi, eu só me encontrei pessoalmente duas vezes. Os parentes paternos mais ligados a mim foram meus tios Lázaro, Vicente, João José, Escolástica, meu avô Vicente, e meu pai, Walkir, que vinha de tempos em tempos me visitar e também tocava violão.

Sua mãe também gostava de música?

 Minha mãe sempre cantou e tocou um pouquinho de violão. Tia Rosa, sua irmã mais velha, cantava muito bem serestas, boleros, tangos e até chegou a ser aluna do grande violonista piracicabano Antônio Carlos Coimbra. Minha tia fazia saraus em sua casa e convidava todo mundo, inclusive outros músicos. Quando eu podia presenciar, ficava hipnotizado por aqueles sons, era mágico para mim.

Que lembranças você tem desses saraus?

As duas irmãs cantavam, em primeira e segunda vozes. Tia Rute tocava sanfona. Uma quase consegui pegar a flauta do seu Pedro Maricone, mas alguém me carregou bem na hora. Eu queria ver, estar perto, participar daquela festa tão alegre! Mas sempre chegava a hora de criança dormir. Eu devia ter uns três anos.

Quando eram feitas à luz do dia, aquelas reuniões continuavam até chegar ao ponto culminante para mim, quando elas começavam a relembrar e contar as histórias do meu avô, o pai delas, Francisco Ernesto dos Santos, um sapateiro e músico nas horas vagas conhecido como Chico Puvi.

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Como eram essas histórias?

Eram histórias recheadas de aventuras tragicômicas, boêmias, mas o que mais me interessava era o que me contavam sobre sua musicalidade. Elas o pintavam como um músico incrível, totalmente diferenciado dos demais. Diziam que quando ele tocava parecia haver dois violões. Que quando uma corda quebrava, ninguém desvendava seu segredo de consertá-la em poucos segundos, voltando a tocar a mesma música com ainda mais desenvoltura.

Mesmo sem tê-lo conhecido, ele passou a ser meu herói. Queria ser igual a ele.

Começou então a pensar em ser violonista?

Eu era um garoto tímido, gordinho, não sabia jogar bola, nem brigar. Entre meus sete e dez anos, frequentei o Oratório São Domingos Sávio, que ficava no colégio Dom Bosco. De final de semana eles abriam as portas da escola para a criançada do bairro. Eu gostava muito, mas ficava mais no pebolim, sinuca, piscina. Eu era ruim de bola e tinha bronquite, não dava para correr. Atrás da minha casa tinha uma vila onde morava seu Xixo Teixeira, presidente da escola de samba Unidos da Cidade Alta. Fui amigo dos filhos dele – Jaia, Nisso, Tito (ex-jogador do XV) e Vado. Sempre assistia os ensaios da bateria, ávido por poder mexer um pouco nos instrumentos, mas não tinha essa permissão. Outra boa lembrança desse pessoal da vilinha, era o som da vitrola deles, que se espalhava pela vizinhança e chegava até meu quintal. Foi assim que ouvi pela primeira vez sambistas como Roberto Ribeiro, João Nogueira, Martinho da Vila, Dona Ivone Lara. Ao mesmo tempo, convivi com os amigos do grupo Luar do Samba, que tinham uma sede social a duas quadras de casa. Para ir ao oratório, eu tinha que passar na frente da “sede“ é lá estavam eles cantando, batucando e churrasqueando. O Oscar, Chileno, Marcão, Seu Litão, Ronaldo Alcarde, Tito Bortolazzo, entre outros. Muitas vezes eu fiquei ali só vendo eles fazendo as estripulias no samba.

E quando começaram suas aulas de violão?

 Com nove anos, eu já fazia aulas com o Antonio Carlos Coimbra. E tocava algumas coisas como Abismo de Rosas, Marcha dos Marinheiros, Sons de Carrilhões… Um dia, passando pela sede do Luar do Samba, ouvi um som que vinha do carro do Chileno que bateu forte. Minha vida mudava ali. Era uma música muito gostosa de ouvir, que me fazia ficar alegre mesmo sem ter voz nenhuma cantando, só violões, flauta, cavaquinho, pandeiros e outros instrumentos que eu não conhecia. O Oscar me disse que aquilo era “chorinho”. A partir disso, nunca mais dei sossego pra eles, sempre me copiavam fitas cassete para eu “tirar” as músicas de ouvido. No domingo, me convidaram para ir na lanchonete do Chacrinha, ao lado do Mirante, pois uma turma iria tocar chorinho lá. Lá estavam os violões de Jairo Araritaguaba e Charutinho, Seu Cardoso no cavaco, Chico no acordeon, Jayme Cursio no bandolim, Tito Bortolazzo no pandeiro, Raul Leite, Bolão, Pompeu do sax. Eu me sentia no céu do choro, uma das alegrias mais verdadeiras de toda minha vida. Nesse dia, eu não soube o que iria fazer pelo resto da vida, mas soube que nunca mais poderia viver longe daquela música.

Seu mestre foi Sérgio Belucco? Qual a importância dele em sua carreira?

Ele teve total importância não só na minha carreira como na minha vida. Não posso deixar de falar também do meu padrinho, Dr. Paulo Nogueira de Camargo, que foi quem me ajudou desde a infância até a adolescência, financiou meus estudos musicais, foi um dos maiores incentivadores para que me tornasse violonista. Ele me deu os primeiros instrumentos. Um anjo do céu nas vidas da minha mãe e minha. Quando eu tinha uns 10 anos, ele disse: “Já é hora do Tato aprender violão com o Sérgio Belluco, o melhor professor que há aqui”. Meu padrinho era amigo do Sérgio e o convenceu a me conhecer para uma espécie de entrevista. Suas aulas eram muito concorridas e ele escolhia os alunos. A primeira vez que minha mãe me levou até ele, eu tinha dez anos. Quando ele me viu, pediu que retornássemos em dois anos, pois me achava muito criança. Não aguentei esperar, voltamos no ano seguinte e conseguimos enganá-lo (risos). Com o Sérgio, eu tive exemplos de caráter, profissionalismo, postura, amor à música, serenidade e, disciplina. Ele era um professor exigente. Eu amei (e amo) esse senhor como meu próprio pai.

Desde quando sente que seguiria carreira como músico?

 O encanto pela música e a vontade de viver nesse meio para sempre se confundem com a minha própria infância. Eu simplesmente ficava extasiado quando tinha oportunidade de ver gente tocando. Minhas brincadeiras mais divertidas eram com meus instrumentos e minhas fitas cassete. Brincava de fazer programa de rádio, me gravava tocando, falando.

Tentou fazer outra coisa?

 Eu trabalhei no Banco do Brasil, fui menor estagiário da agência da praça José Bonifácio. Achava que seria bancário pois naquela época era uma carreira bastante disputada. Só não permaneci lá porque o Collor acabou com o concurso interno…

Sente saudade de Piracicaba?

Eu estou constantemente em Piracicaba, visito sempre minha mãe. Mas com certeza eu sinto saudades da cidade. Saudade do “ar” interiorano de Piracicaba, saudade de um tempo que ficou muito marcado pra mim, um tempo que a gente podia fazer serenata. Saudade das escolas que passei, Dr Alfredo Cardoso, Sud Mennucci, dos amigos queridos… Gosto muito de comer na Rua do Porto, da Festa do Divino. Eu não curto muito o trânsito atual da cidade. Parece uma São Paulo em miniatura…

O Brasil valoriza a música instrumental como se deveria? O que falta?

A música instrumental não é tão valorizada por responsabilidade daqueles que comandam as mídias e as telecomunicações em geral. Essa história é antiga. A música de qualidade, assim como qualquer outra arte bem elaborada, estimula o senso crítico das massas, trabalha conceitos subjetivos, e percepções sensoriais tão importantes (ou até mais) quanto o pensamento cartesiano. Estimular o raciocínio da população quase nunca foi a meta prioritária daqueles que no governaram. Além disso, a arte de qualidade exige investimento, criatividade, vivência, experiência. As grandes televisões e rádios sempre deram preferência a uma música muito rasa e pífia, com grande poder de entorpecer aos desavisados. Sem contar que esse tipo de música se torna obsoleta tão rapidamente quanto explodiu nas paradas de sucesso. Esse ciclo retroalimenta todo processo.

O que é a música para você? Como imagina um mundo sem música?

A música foi a tábua de salvação da minha vida. Como diria Nietzsche, sem música a vida não faria sentido.

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