Marcela Costa: alma de violeira

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Juliano Franco

Marcela Costa: alma de violeira

Aos 37 anos, Marcela Costa se divide entre a direção da Escola Momento Musical e a regência da Orquestra de Viola Caipira As Piracicabanas. O grupo, não apenas pelo nome, é a cara da cidade. As integrantes, incentivadas pela regente, escolheram a música de raiz sertaneja para encantar o público. Marcela diz que essa é a nossa cultura de fato. Ela sempre se interessou por música, mas a viola caipira surgiu em sua vida por meio de Mazinho Quevedo. Como artista e educadora, ela se confessa preocupada com o fato de ver a música ser apenas um veículo comercial. Mas o orgulho caipira a faz seguir adiante.

A Província – Quando surgiu a ideia de uma orquestra de violeiras?

Marcela Costa – Eu fui uma das fundadoras da Orquestra Piracicabana de Viola Caipira, que tinha homem e mulher. Ela se formou de um grupo de alunos de uma oficina que teve na cidade, onde aprendemos a tocar viola.

O professor era o Mazinho Quevedo?

Sim. Ele veio para Piracicaba ensinar, passamos dois anos juntos e se formou uma amizade. Eu já tocava violão, desde os sete anos de idade.

Qual a diferença de violão para viola?

Tem bastante! Começa que o violão tem seis cordas e a viola tem dez, só que separadas em cinco pares. A gente considera cinco porque aperta duas de cada vez. A viola é mais voltada para a música raiz mesmo. O som é típico da viola. E cada região tem várias denominações, tanto de ritmo quanto de afinação, além do jeito de tocar. Por isso que a gente chama a viola de instrumento regional.

Quando você ouve um violeiro, você identifica de onde ele é?

Hoje está mais difícil porque se expandiu mais. Mas há uns dez anos tinha isso. Quando você ouvia uma música do Almir Sater, nota que é bem diferente do que a gente toca aqui.

Foi com o Mazinho que você conheceu a viola?

Não, eu já conhecia daqui, dos violeiros que eu ouvia. Tinha a dupla Gustavo e Gabriel e o Milo da Viola, que acompanhava os cururueiros. E eu sempre via o Mazinho tocando por aí. O som da viola era intrigante para mim, além de ser contagiante. Aí meu pai me incentivou e um dia chegou com uma viola e me deu de presente.

Ele tocava também?

Não, nunca tocou, mas sempre me incentivou. Eu já tocava violão e na época estava em alta o teclado. E eu comecei a reinar na viola. Aí tinha uns amigos que tocavam. Mas era muito difícil ter quem ensinasse viola.

Os violeiros não ensinavam?

Como a viola era passada de geração pra geração, se pensava que era muito difícil de tocar. Aí, quando um violeiro fazia umas coisas mais bonitas, ele não queria passar.

Tinha um pouco de ciúme?

Porque foi ele que fez, aquilo era uma marca dele. Então, a viola quase morreu.

Por conta dessa preocupação de não passar para os outros?

Sim, mas era uma coisa da época, a cabeça diferente. Por isso, quando o Mazinho veio pra cá, muita gente aprendeu viola.

Aí foi formado o grupo. E tinha quantas mulheres?

Tinha umas cinco no meio de 20. Era uma minoria.

E não foi difícil você formar um grupo só de mulheres, já que havia poucas?

Acontece que quando acabou a oficina, a gente pensou: e agora, o que vamos fazer? Porque a gente trocava muita ideia. Aí nos juntamos e já estava começando essa onda de orquestra. Foi aí que surgiu a primeira orquestra. Como eu estudava música, conhecia partitura, fui escolhida para fazer os arranjos e isso foi acontecendo naturalmente. Aí fiquei cinco anos na Orquestra Piracicabana. Daí sai, tive meu filho, fiquei mais tranquila. E entrou outra pessoa em meu lugar.

Aí você veio para a escola Momento Musical?

Sim, e minha sócia, a Ivete, sempre me desafiava a criar um novo grupo.

Mas você achava que tinha de ser diferente?

Eu pensava: ah, não quero montar outra orquestra. Porque eu tenho tanto carinho por aquilo que a gente construiu. Porque ia acabar sendo uma concorrente. Aí que veio a ideia de fazer só com mulheres. Porque eu tinha tanta aluna. Porque eu acabei sendo um incentivo pra elas.

E como elas reagiram à ideia?

Nossa, ficaram muito animadas! Uma foi convidando a outra. Isso foi em 2010.

Vocês começaram com quantas integrantes?

Tinha 14. A primeira apresentação foi no Sesc, no final daquele ano. E já tivemos uma repercussão enorme.

E que música ficou a cara de vocês? É o Rio de Lágrimas?

Tem várias. A minha preocupação foi também trazer coisa nova, não só tocar o que todo mundo conhece. Temos Menino da Porteira no repertório, mas também trouxe Triste Berrante, uma música linda que estava esquecida. Tem também Cai Sereno, que foi gravada pelo Mazzaropi.

O repertório é todo de música raiz?

Só raiz! Porque ela é a verdadeira música tradicional e isso é muito importante. O jeito de cantar, de tocar. Porém, a gente se utiliza um pouco do contemporâneo.

Como é essa mistura?

Uma das coisas que fazemos diferente é a forma de cantar. Tonico e Tinoco cantavam com uma voz bem estridente, um pouco chorada. Porque na época em que eles gravavam o equipamento de som era muito ruim.

Eles tinham que ter potência vocal.

Só gravava quem cantava forte. Eles se acostumaram a cantar assim. A música raiz veio disso aí. Só que essa forma de cantar às vezes pesa no ouvido de quem não está acostumado.

E como você vê a música sertaneja atual? Ainda é sertaneja?

Nem é mais sertaneja! Modificou tudo. Não tem mais o ponteado, não tem mais a segunda voz. As rítmicas usadas nas batidas das músicas se transformaram totalmente. Tem música com levada de funk carioca.

E é sempre muito agitado…

Sempre, até demais! Antes não havia percussão na música sertaneja. Mas a gente colocou e acabou ficando legal.

Os temas mudaram muito, mas é que o mundo evoluiu, não?

Na verdade as coisas bonitas ficaram no sertão. A gente não pode julgar quem não viu a beleza do sertão. Eu mesma vi muito pouco, tive o privilégio de estar no sítio com meu vô quando era criança. Tudo que eu tenho é lembrança.

Eles não são mais sertanejos…

Li um artigo do Ivan Vilela em que ele analisa isso. Mudou letra, jeito de tocar, ritmo, jeito de cantar, até a questão das notas.

Você é saudosista?

Não sei, eu gosto de música raiz e tento não descaracterizá-la em termos técnicos, mas gosto de trazer uma levada mais rápida do que era antes. E cantar de forma diferente, mais suave. Mas só uma dose, para não chegar no nível agitado. Porque as pessoas esperam essa suavidade.

Quantas apresentações fazem em média por mês?

Tem bastante variação, mas no ano fazemos uns 20 shows. Porque como é bastante gente, hoje estamos em 24 integrantes, a logística é complicada. Fazemos mais a região.

Piracicaba ainda é um berço da música caipira?

Com certeza! E essa nova geração, que está vindo tocando viola, é que vai manter. Piracicaba sempre foi um berço da música. Tião Carreiro vivia aqui, tem uma ponte com o nome dele. Tenho amizade com Juninho, o filho do Nhô Chico. Ele viveu com esse pessoal, as duplas, os cantadores de cururu.

O cururu está morrendo?

É, não vejo mais jeito.

Vocês já gravaram um DVD?

Gravamos em 2014 e só conseguimos lançar no ano passado. Demorou porque é muito burocrático, muito dinheiro envolvido. E tem a questão dos direitos autorais de todas as músicas. Isso é muito cara. Mas consegui entrar no primeiro edital de cultura que teve na cidade.

O público daqui valoriza?

Não tanto quanto poderia.

O que falta?

Conhecer um pouco mais, dar mais visibilidade. Ainda tem aquela coisa de ‘ai, credo, não quero ser caipira”.

Isso é mais dos jovens?

Sim, mas a meia-idade também tem um pouco disso. As pessoas precisam entender o que é cultura, o que é preservar isso. Que o falar caipira não é feio, é uma identidade nossa.

Não precisa gostar, mas respeita, né?

Exatamente. A mídia impõe muita coisa. Só deixa aquilo que dá dinheiro. Não importa que qualidade tenha. Aqui em Piracicaba tem várias rádios que valorizam, uma delas é a Educativa FM. Mas porque não tem envolvimento com valores. Já as rádios comerciais fecham as portas pra gente.

Você já deixou claro o que pensa do sertanejo universitário. E a música brasileira de forma geral?

A música brasileira é muito rica, mas a gente fala mais de tempos atrás. Tem muita coisa escondida, que a mídia não tem interesse. Tem muita gente fazendo música boa. Falta educação cultural. As crianças não conhecem. Eu falo isso porque dou aula num colégio da cidade. E dia desses tivemos uma atividade em que eles deveriam trazer uma música de que gostassem.

E o que aconteceu?

Ai meu Deus! Eles trouxeram um carioca!

E você como educadora não pode reprimir…

É a realidade deles. Mas tento levar a eles coisas têm. Eles gostam disso porque é o que eles têm. Tento levar coisas novas, mas aos poucos. A aceitação não é tão simples assim. Eles estranham.

Como mãe, o que você faz quando seu filho ouve música ruim?

Eu não impeço. Ele tem seis anos e gosta de Despacito. Mas tento mostrar outras coisas pra ele. O mais importante é mostrar, sem impor.

O que é música pra você?

Música é sentimento, é o que está dentro da gente, com a influência do mundo.

Como seria o mundo sem música?

Muito triste, sem reflexão, sem sentimento.

 

1 comentário

  1. Antonio Amaral Frerie em 16/03/2018 às 13:02

    Muito bom. Adorei Marcela. Parabéns e continue defendendo a nossa moda raiz e a nossa viola. Abração, saudades.

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