Nha Florinda encontra Dita em São Paulo

O texto abaixo foi publicado em novembro de 1987 no semanário impresso A Província. Preservamos datas, idades, comentários e gramática originais do texto.

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Em seu ensaio de classificação dos linguajares brasileiros “Os três erres do Brasil”, Pedro Falzoni nos apresenta razões históricas e influências étnicas para a pronúncia típica do r em nossa região. Com ou sem explicações, a verdade é que o linguajar caipiracicabano, suave, arrastado e doce, é registro de identidade nosso, da província.

Se alguém duvida, pergunte ao crítico de arte e engenheiro civil Afranio do Amaral Garboggini, que nos contou:

O “CAUSO” DA NHA FLORINDA

“Logo abaixo do nosso casão da rua Boa Morte, mas na rua Dom Pedro I, existia um corredor de casinhas, nas décadas de 30 e 40, que mais tarde foram substituídas pelas casas atuais.

Na última delas, vizinha ao Paulo Pecorari, morava uma família de cor cuja matriarca era Nha Florinda, gente muito amiga de minha família. Meu irmão Aldo, ainda pequeno, estava sempre lá e foi quem me contou o “causo”.

Já moça, uma das filhas de Nha Florinda foi trabalhar como doméstica em São Paulo, onde os ordenados eram bem maiores que os daqui, e deixou com sua família o endereço da patroa que morava na Vila Mariana.

Naquele tempo, uma viagem a São Paulo era um acontecimento na vida da pessoa. Nha Florinda então começou a fazer economias para pegar o trem da Paulista de manhã e poder voltar no mesmo dia com o trem da noite. Só que na véspera da viagem, perdeu o papelzinho com o endereço. Discussão com a família: Vai, não vai, como é que a senhora vai achar a casa? — etc. Os parentes alarmados, pois como a velha iria sozinha procurar a filha naquela “cidade” que era Vila Mariana, embutida naquele mundo que era São Paulo? Mas a velha era rija e não cedeu. Tinha dito que ia e ia mesmo. Não adiantaram argumentos. Lá ela daria um jeito. Bem munida de dinheiro, tomou a “‘Paulista” bem cedinho e lá se foi, deixando a família apavorada.

NO “MUNDÃO” DE SÃO PAULO

Na Estação da Luz pegou um “carro de praça” cujo chofer era um italianão meio velho, daqueles bigodudos e faladores, que também ficou assombrado quando soube que Nha Florinda ia procurar a Ditinha (ou outro nome assim) naquele mundão que era Vila Mariana, Vila Clementino, Ana Rosa, Afonso Celso, com limites no Paraíso, Aclimação, Ibirapuera e Saúde. Mas a velha continuava insistindo: a obrigação dele era levá-la a qualquer lugar. Nha Florinda pediu, então, que a conduzisse à alguma praça. Mas qual? Ele escolheu uma, quase ao acaso, e foram.

O táxi andou, andou, andou… (naquele tempo não existiam as vias de alta velocidade) e os dois foram conversando até que chegaram a uma praça e o italianão disse: “Aqui é uma praça da Vila Mariana, e agora?” Contornaram o jardim bem devargarinho, até que Nha Florinda viu um grupo de moças e moços de cor, naquele papo dos domingos antigos. Pediu para o motorista parar junto dos “patrícios” e perguntou-lhes se conheciam uma moça, assim, assim, que havia chegado do interior há pouco mais de um mês. Os jovens atenderam bem, alguns talvez até se lembrando de suas mães e avós que também haviam ficado no interior, de Minas, da Bahia… Mas ninguém conhecia a Ditinha. Uma das moças, porém, recordou-se que no sábado anterior tinha batido um papinho, na feira, com outra empregada “que falava diferente” e que tinha vindo de fora há pouco. Essa, estava trabalhando em uma casa não muito distante dali, em cujo portão, as duas haviam se despedido de volta das compras. Era a única informação que podiam prestar. Quem sabe ia dar certo!

Nha Florinda esperançada pediu a ela para orientar o carro até lá. Bateram palmas e quem veio atender à porta foi… a Ditinha!

Daí, por diante foi duro aguentar Nha Florinda repetindo que “oceis pensa que porque a gente é véio, é bobo, que não sabe procurá ninguém em São Paulo? Foi bão, proceis não pensá que a gente é tonto. A gente preguntano, acha!”

 

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