Coitado do tio Juquinha (3)

Em fins de 1899, São Paulo contava com uma população respeitável de 240 mil habitantes, quase metade de origem italiana. Tílburis e troles disputavam espaço com os bondes a tração animal. Os bairros verdadeiramente residenciais ficavam afastados, para além da cidade nova, ou seja, além do córrego Anhangabaú, onde hoje se encontra o Theatro Municipal. Por volta de 1878, o alemão Frederico Glette, associado a um patrício, Victor Nothmann, loteia o bairro de Campos Elíseos, que passa a ser o preferido pela camada afluente, em virtude da proximidade da Estação da Luz. Em 1891 é inaugurada a avenida Paulista, numa região ainda marcada por acentuados traços rurais. Alguns anos antes, em 1883, Almeida Júnior deixaria a terra natal e instalaria seu ateliê num pequeno rés do chão à rua da Princesa, nº 11; em 1888, mudou-se para a rua do Imperador, quando enfim se transferiu para um imóvel que lhe foi cedido pelo conselheiro Antônio Prado, na rua da Glória, nº 74, no atual bairro da Liberdade. O terraço da casa abria-se para os fundos do antigo Teatro São José, que se localizava logo ali no largo de São Gonçalo, atual praça João Mendes. A telaLeitura, de 1892, exibe uma jovem senhora, quem sabe o pivô do drama, sentada junto ao gradil do terraço, segurando um livro; atrás dela, vê-se um imóvel com um toldo listrado e, ao fundo, num espaço mais rural do que urbano, algumas edificações, uma das quais se presume deveria ser o teatro.

Chegando à capital, Juca dirigiu-se de tílburi à rua da Glória, aproveitando o trajeto para repassar trechos do script que há dias o obcecava. Apeando no nº 74, bateu a aldrava da porta com vigor despropositado e invadiu o corredor de entrada, não se dando ao trabalho de cumprimentar o empregado que lhe franqueou o acesso; mesmo com os olhos vendados saberia se orientar por todos os cômodos, tantas vezes lá se hospedara. Eram quatro horas da tarde mais ou menos. Conhecia a casa inteirinha, assim como conhecia o fiel caseiro Severino. Tinha bem gravados na retina todos os móveis, louças, pêndulos, reposteiros e demais trastes que lá se achavam, de que sempre gostou e que viriam a ser pormenorizadamente listados pelo leiloeiro Alfredo C. Pereira no anúncio que este fez publicar em 3 de março de 1900, avisando o público do leilão judicial do espólio de Almeida Júnior. Juca refreou a impulsividade e, afável, informou ao empregado que sabia estarem ausentes o pintor e o filho Renato, mas que tencionava ficar alguns dias hospedado na casa, pois que viera tratar de negócios. Sorridente, o empregado assentiu e ofereceu um café ao amigo do patrão.

Enquanto esperava, Juca esquadrinhou os móveis da sala de jantar – a mesa de cinco tábuas, as peças maciças de nogueira, a cristaleira e o guarda-pratas, o relógio de pêndulo, os quadros e os diversos serviços para almoço e jantar. Tomou o café e se dirigiu à sala de visita. Depois de passar em revista a mobília Luís XV e um dunquerque, e espiar dentro das jarras e embaixo dos objetos decorativos dispostos sobre o piano, procurando sei lá o quê, encaminhou-se para o quarto que o filho ocupava, que era colado ao de Almeida Júnior, com a intenção de “mudar de roupa”, como mais tarde explicaria. Na verdade procurava prova que validasse sua obsessão ou dela o liberasse. Era um quarto simples, com boa guarnição de canela cirée, aparelho para toalete, escarradeira. Serviu-se do gabinete de vestir do artista para fazer sua toalete quando deparou com algumas cartas que estavam sobre o lavatório, reconhecendo no subscrito de uma delas a letra de sua mulher. Alçou-a dentre as outras, com dois dedos, como se hasteasse de uma urna um bilhete lacrado, e ao procurar abrir o envelope notou que o invólucro havia sido cortado ao redor por uma espátula e que se abria em quatro, deixando entrever o interior todo escrito a lápis num cursivo que tão bem conhecia. Observando a uma formalidade que lhe parecia necessária, levou a carta às narinas, sorveu um perfume que lhe era familiar e pôs-se a ler. Desabou sentado na cama, como se o combustível que o conduzira o dia todo subitamente tivesse sido cortado mediante a confirmação que encontrara na correspondência. Caiu num choro convulsivo.

Tudo ocorrera num turbilhão: a viagem depois de uma noite insone; a percepção de que os negócios nunca se acomodariam; a antevisão da catástrofe; a evidência da traição de Maria Laura – tudo havia se precipitado, e o espanto da nova realidade o deixava à beira da catatonia. Súbito saiu do transe e num salto pôs-se de pé, cofiou a barba densa e, correndo, dirigiu-se ao quarto contíguo do pintor. Uma réstia de luz iluminava fugazmente o madeiramento do assoalho. Com furor vasculhou todos os móveis, forcejou gavetas da cômoda e do armário, revistou o criado-mudo. Revolveu a cama, revirou o colchão. Sobre um aparador, encontrou algumas cartas, conferiu a caligrafia e as pôs no bolso. Em seguida dirigiu-se ao ateliê, em busca de outras; escancarou algumas gavetas e por fim encontrou um maço de cartas que reconheceu serem de sua mulher. Com curiosidade quase lasciva, passou os olhos em algumas delas, abandonando-as sobre a mesa. Precisava de mais liberdade para a devassa. Chamou o criado e, pretextando precisar enviar um bilhete ao dr. Estanislau do Amaral – que deveria lhe entregar 1 conto de réis por ordem de Theophilo do Amaral Campos –, pediu a Severino que o apresentasse àquele senhor, à rua Visconde do Rio Branco, número 59, e lhe trouxesse o numerário. Nesse ínterim, ficaria tomando conta da casa. Severino, em seu depoimento, disse que Juca estava completamente perturbado e mal conseguia escrever o bilhete, murmurando palavras que ele não entendeu. Logo que se viu livre do empregado, mergulhou na leitura das cartas. Eram devastadoras.

 

A signatária registra a lápis, com ponta fina, em folhas de papel escritas dos dois lados, sua paixão pelo pintor, seu desespero em relação aos problemas econômicos que oprimem a família e sua aversão ao marido, com quem se casara, costume à época, quando tinha apenas treze anos, dez menos que ele.

A redação é descuidada, tosca, muitas vezes truncada, o que é compreensível em quem, até pela idade em que se casara, carecia de maior escolaridade. Além do mais são mensagens escusas, redigidas às escondidas, em geral à noite, sob a luz escassa das velas. A devoção amorosa aparece mesclada a um estado de profunda ansiedade: “Sinto uma saudade cruel de você; parece que já faz um ano que não te vejo, um ano que não nos abraçamos. Quando foi isso? Me parece um século”, diz numa carta datada de 23 de setembro, provavelmente de 1899. Em outra, esta de 13 de outubro do mesmo ano, escreve: “Deus que me arranje um meio de não ficar longe de você, pois tudo mais não é nada; isso é que me faz maior sofrimento.” Em três folhas, sem data, registra: “Meu bem, está chegando o dia de martírio para mim: separar-me de você, eu fico desesperada com isso […] eu podia viver feliz na tua companhia, afastada dessa gente que só serve para me fazer sofrer, eu já não posso mais suportar esta vida […] Agora quando te verei? Marque quando vem para eu te esperar […] não me canso de pedir a Nossa Senhora de Lourdes que atenda a meus rogos […] Aceite tudo quanto pode haver de afeto, saudades loucas […]. É meia-noite. […] Vou te esperar; quero demais te ver. Adeus, abraço e beijo a tua eterna e terna boca. Vai com pingos de lágrimas de saudades.”

À devoção ao pintor se contrapõe uma repulsa pelo marido, a quem se refere com expressões desairosas: burro, imundo, nojento, a quem cada vez mais odeio, causador de todas as minhas desgraças, coisa à toa que eu não posso mais suportar. Não acredita minimamente que o marido consiga superar as dificuldades por que está passando: “Agora a peste inútil e imunda diz que vai pedir rebate, todos os credores deixando pela metade, como coisa que há de conseguir isso.” A certa altura, aconselha o pintor a se precaver, pois Juca pode recorrer a ele, pedindo dinheiro emprestado: “Você não calcula quanto estimei não pagarem o teu quadro tudo de uma vez, porque se ele visse você receber 50 contos esse cara dura não ia sair de cima do teu suor.” Implora aos céus a morte do marido e insinua a possibilidade de o mesmo vir a ser assassinado: “Me consolava muito e muito se me visse livre desse inútil causador de todas as minhas desgraças neste mundo, não há de morrer esse desgraçado para me deixar livre? […] Meu Deus, quando me verei livre de semelhante peste, podia esses colonos fizessem essa grande limpeza e cuidado para mim.” Fala também dos filhos, dois dos quais insinua serem de Almeida Júnior, sobretudo a caçula: “Está com 6 anos a tua filhinha; sinto ver ela na idade de receber educação, que havia de ser boa tendo um pai como ela tem e não aproveitar.” E como se quisesse persuadi-lo de que os pequenos são, de fato, filhos do amante, alude a semelhanças, sobretudo de atitude – quando a menorzinha brinca, comenta num dos bilhetes, “os brinquedos são ouvidos e vistos com chuveiros de lágrimas que não posso conter vendo uma expressão tão igual que parece que herdou tudo”. E: “querido, o outro… está muito ativo também e bonitinho.”

Era tal o espanto e tão profundo o agravo que Juca sentiu faltar-lhe chão, soterrado pelo mundo que desmoronava em cima dele. Levou bem uma meia hora para despontar dos escombros e pôr-se de pé. Lembrou-se de que Severino não tardaria, o que de fato ocorreu; o empregado disse que a resposta à carta viria dali a pouco, por mensageiro. Há aqui uma divergência entre os depoimentos de Juca e Severino. Segundo o primeiro, meia hora mais tarde, um portador do dr. Estanislau chegou com o dinheiro; Juca teria deixado a casa da rua da Glória em companhia do homem, de quem se separaria no largo do Teatro, dirigindo-se a uma repartição que fornecia passaporte sanitário, necessário nas viagens de São Paulo para o interior. Encontrando o local fechado, vagou agitado pelas ruas, até que mais tarde retornou à repartição, onde encontrou um parente, o Amaralzinho, que o convidou a dormir em sua casa, na rua Santa Thereza. No dia seguinte embarcaria para Piracicaba.

Segundo Severino, Juca teria permanecido na rua da Glória até as 19 horas e recebera o dinheiro das mãos do próprio dr. Estanislau do Amaral, a quem informou que pernoitaria na casa de Raphael Pompeu, na ladeira da Tabatinguera, rumando para o interior no dia seguinte. Ao deixar a casa da rua da Glória logo depois, pediu a Severino que lhe levasse a bagagem à Estação da Luz na manhã seguinte, às cinco, quando tomaria o primeiro trem.

 

Provavelmente não pernoitou em nenhum endereço; perambulando pelas ruas até de madrugada, dirigiu-se antes das cinco da manhã à estação. Enquanto errava pela cidade, Juca repassava os últimos capítulos do folhetim em que se transformara sua vida. Aos poucos, a perplexidade começou a destilar um ódio que logo se transformou em determinação homicida. O coração de Juca clamava por vingança e exigia a pena de talião: olho por olho, dente por dente. Ao conspurcar-lhe a honra e destruir-lhe a vida, os traidores deveriam pagar com a vida. Ao sofrer um mal ou dano, a vítima torna-se credora de valor equivalente junto a seus ofensores. É o que explicaria ao sr. Antônio Alfredo Costa, depoente no processo: ao perguntar a Juca, após o crime, quando este recebeu voz de prisão, se era inimigo de Almeida Júnior, “ele respondeu que não, que até eram amigos, mas que a vida daquele homem lhe pertencia”. A testemunha Silvério Francisco Ferreira confirmou ter ouvido o mesmo comentário. Matar o rival era, portanto, direito seu, sobre o qual não cabia contestação. Alimentava, porém, sérias dúvidas em relação à mulher. Subtrair a vida da adúltera talvez fosse pouco, punição insuficiente para reparar a dor por ele sofrida – no fundo, seria permitir que Maria Laura se imolasse num preito ao rival. Melhor poupá-la e sequestrar seu objeto de amor, confiscá-lo do mundo, mantendo-a viva, sopesando o sofrimento que infligira ao marido.

Pronunciado o veredicto, Juca passou a maquinar os meios de executá-lo. O golpe deveria ser único, no sangradouro, como costumava fazer ao sacrificar os animais do sítio. Quer dizer, ele teria que se valer da surpresa, para evitar interferências, e o ferimento, ainda que único, precisaria ser fatal. Ademais, o ato deveria ser praticado logo após o conhecimento das cartas vis, ou seja, ainda sob a influência da emoção que de fato ainda o dominava, para que ele pudesse se eximir de qualquer condenação. Envolto em especulações, foi como um sonâmbulo que caminhou pela Marechal Deodoro, vencendo os dois quarteirões que se interpunham entre o largo de São Gonçalo e o largo da Sé. Àquela hora praticamente todos os estabelecimentos comerciais haviam cerrado as portas. Passou pelo antigo ateliê que Almeida Jr. mantivera nessa rua e se lembrou com aversão da pintura feita pelo rival no teto na velha catedral da Sé, cujo contorno agora entrevia.

O largo da Sé era pequeno, ocupado pela velha catedral e, bem junto a ela, em posição perpendicular, pela igreja de São Pedro dos Clérigos. Num dente formado pela lateral da igreja da Sé, perfilavam-se dois grupos de tílburis de aluguel. Combinou com um dos cocheiros que o apanhasse lá pelas quatro da manhã na rua de Santa Thereza, esquina da rua do Carmo, em frente à casa do Amaralzinho. Depois caminhou pela rua XV de Novembro, iluminada por lampiões a gás e àquela hora ainda apinhada de gente e tomada pelos bondes. Havia algo irreal no contraste entre o tormento interior por que passava e a identidade que continuava a reconhecer no mundo exterior. O centro da cidade estava como sempre, até mais límpido. Mas para ele esse mundo já não era o mesmo.

Pensou em tomar um trago, ou ao menos um café, e apertou o passo em direção ao largo do Rosário. Lá chegando, trocou um dedo de prosa com dois conhecidos, também do interior, e entrou, primeiro, no Castelões, depois na Brasserie Paulista. Acompanhou por vários minutos a onda expansiva das confeitarias, sem música mas com trilha sonora cheia de vozes, tilintar de copos e risos. Pediu uma bebida, depois outra, e ficou um tempo a observar o movimento e ruminar seu drama. Sentindo o efeito do álcool, solicitou um café e resolveu comer alguma coisa. No caixa, um homem calvo, o cenho franzido, examinava a comanda. Ao fundo, um senhor, numa mesa também solitária, fumava um cigarro e bebericava lentamente. Juca mal encostou na refeição. Quando saiu à rua, os grupos tinham se dispersado e a animação se desvanecera. Eram onze horas. Retomou sua errância.

Rodou ao léu até as três e pouco da madrugada, quando se dirigiu ao ponto de encontro combinado com o cocheiro. Dali a pouco encostava o tílburi; tomou-o e percebeu-se muito cansado, o corpo moído. Sentia-se irremediavelmente sozinho. Pegou-se pensando nos momentos felizes do casamento, da noite de núpcias ao nascimento dos filhos, e esse recrudescimento do amor, fruto mais da ilusão retrospectiva, chocava-se e estilhaçava-se contra a realidade atual. Sua vida se desfigurava no redemoinho da frustração e do ódio dentro do qual se debatia. Afastou com raiva essa intromissão do passado, e à medida que atravessava a cidade vazia, mapeava os passos de sua futura vingança. Foi um trabalho de ourives que consumiu a noite inteira do dia 11 para o dia 12. Às cinco da manhã, quando tomou o trem, levando a mala que Severino lhe entregara, tinha um plano bem lapidado.

 

*Continua

 

NOTA: José de Almeida Sampaio – Juquinha para os íntimos – era o irmão mais moço de minha bisavó materna, Francisca Eugênia Sampaio Góes Paes de Barros. A figura de Almeida Júnior era execrada na família. Meu sogro, cuja mãe – tia Luizinha de Almeida Sampaio Lara – também era irmã de tio Juquinha, recusou-se a comprar algumas telas do pintor que lhe foram oferecidas por uma bagatela, por lealdade ao tio ultrajado.

 

*Continua

 

NOTA: José de Almeida Sampaio – Juquinha para os íntimos – era o irmão mais moço de minha bisavó materna, Francisca Eugênia Sampaio Góes Paes de Barros. A figura de Almeida Júnior era execrada na família. Meu sogro, cuja mãe – tia Luizinha de Almeida Sampaio Lara – também era irmã de tio Juquinha, recusou-se a comprar algumas telas do pintor que lhe foram oferecidas por uma bagatela, por lealdade ao tio ultrajado.

 

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