Cartas de amor e de morte
Em abril de 1966, lançamos,em Piracicaba, a revista “Piracema”. E a reportagem principal levava a minha assinatura, com material recolhido nos arquivos de João Chiarini. O título era: “Almeida Jr: uma história de amor, arte e sangue.” Essa história ainda não se acabou.Pois a personalidade e a obra de José Ferraz de Almeida Júnior, o “Jujiquinha”, ainda despertam admiração e respeito. E sua paixão por Maria Laura do Amaral Gurgel,o amor impossível que viveram e a tragédia que aconteceu continuam envoltos em névoa, com muitos silêncios e pudores, como se a memória dos amantes pudesse manchar-se diante do amor que os uniu.
O fato concreto é que foram as cartas de amor Maria Laura ao pintor – descobertas pelo marido, José de Almeida Sampaio – que se tornaram, também, cartas de morte.
Mas e essas cartas, todas elas, para onde se foram? Algumas foram publicadas, outras, sonegadas ao público. E o processo desapareceu. A principal e mais completa obra sobre o tema – “Almeida Júnior – o Romance do Pintor” – é do escritor Vicente de Paulo Vicente de Azevedo, da Academia Paulista de Letras. Publicada em 1985, edição própria, abriu portas para novos estudos. Mas não encerrou a questão.
Episódios finais
Passando por graves dificuldades financeiras, José de Almeida Sampaio estava próximo de um colapso nervoso diante de comentários que ouvia a respeito das relações de Maria Laura, a mulher, e seu primo, Almeida Júnior, que retornara da Europa em 1898. Segundo o escritor Pereira da Silva, o pintor voltara com “uma sede de trabalho incrível. De 1888 a 89, realizou vertiginosamente muitas obras, ideando, esboçando, estudando outras como se estivesse pressentindo o próximo fim. Assim, foi.”Maria Laura assinava as cartas identificando-se como “666”. Há autores que registram “bbb”, talvez para impedir interpretações mais maliciosas em relação aos números.
O fato é que a maioria das cartas de Maria Laura são, por assim dizer, ingênuas, sem malícia.
Como esta, também encontrada pelo marido:
“Primo Jugiquinha: … não desejava mais lhe incomodar, mas não há remédio, falta-me lã para acabar de encher a almofada,estou parada e aflita por querer acabar, tenha paciência,mande-me mais duas meadas desta lã roxa e espero não precisar mais incomodar-lhe.”
Juca Sampaio, o marido, ia a São Paulo e hospedava-se na casa de seu primo, Almeida Júnior. Em 31 de outubro de 1899, fez uma reunião com seus credores em seu sítio de Rio das Pedras, propôs-lhe alguns acordos e, no início de novembro, estava em São Paulo para fazer os acertos. Foi lá – no atelier de Almeida Júnior, à rua de São Gonçalo e, também, na residência, na rua da Glória – que ele encontrou as cartas. Almeida Júnior estava no sítio, em Piracicaba.
Com Morato e Prudente
De posse das cartas e transtornado,Juca Sampaio foi à procura do advogado piracicabano Francisco Morato.Era, porém, cedo demais e o dr. Morato repousava.Então, foi à procura do ex-presidente da República,Prudente de Moraes,que reabrira a sua banca de advogado juntamente com o genro, dr.João Domingues Sampaio.A descrição do encontro é feita por Vicente de Azevedo:
“Ao dr. Prudente de Moraes, Juca Sampaio contou o que se passava e revelou a sua intenção de matar Almeida Júnior.Prudente aconselhou-o, procurou dissuadi-lo daquela resolução sinistra. Fez ver que o crime só agravaria a sua situação,além de insolvivel economicamente,seria preso e legaria a seus filhos a pecha de assassino. O razoável era requerer o divórcio, separar-se de Maria Laura e cada um seguiria o seu destino. Almeida Sampaio pareceu concordar:confiou-lhe as cartas e apontamentos.
Indagou dos documentos necessários, sendo instruído que era necessária a certidão de casamento.”
Juca Sampaio atendeu a orientação de Prudente de Moraes.Tanto assim que passou três telegramas:um a Maria Laura, pedindo que ela viesse a Piracicaba;outro a seu cunhado, dr.Octávio do Amaral, a quem queria mostrar as cartas e os documentos;o terceiro a Antônio Leite Sampaio, em Indaiatuba,pedindo-lhe que trouxesse a certidão de casamento.”
O crime
O crime já foi narrado e descrito muitas vezes, também no “Memorial de Piracicaba – Almanaque 2000.” Quem conduzia Almeida Júnior era o cocheiro Davi Francisco. No mesprocura mo carro, vinham Maria Laura, a cunhada Ana Brandina Sampaio e as crianças,filhas do casal. O pintor estava, ainda, pagando a corrida, quando Juca Sampaio se aproximou,perguntando se fizera boa viagem. E apunhalou-o, atingindoo “na região supra-clavicular esquerda”.
Já foram relatadas as descrições cruas de testemunhas oculares,tais como Tales de Andrade e Francisco de Assis Iglésias.E, também, a atitude condenável de Janjão Castro, dono do Hotel Central, à frente do qual acontecera o crime e onde Almeida Júnior estava hospedado. Janjão impediu que populares e pessoas que socorreram o pintor o levassem para dentro do hotel. Um cocheiro de praça, Antônio Coelho, o Totó Coelho, levou o corpo de Almeida Júnior em seu coche, com a intervenção de Pedro Ferraz do Amaral. Um documento de protesto foi assinado contra a atitude de Janjão Castro.
Segundo a testemunha Alonso de Carvalho, no processo, foi Maria Laura quem tirou a faca-punhal do peito de Almeida Júnior. Gritando que queria ser levada ao Salto, desmaiou, desesperada.