Hino Nacional e o coração

Viver vive-se vivendo (29)

Sei, hoje, de todo o nacionalismo despertado pelo governo de Getúlio Vargas, um tempo que se encerrou quando cheguei aos meus cinco anos de idade, em 1945. Foi Deus, com certeza, que me deu como que um registro de memória, coisas que se me gravam sem que eu mesmo deseje captá-las. Ora, este Fundo do Baú tem-me sido, também, como que um Confiteor. Na verdade, escrever, colunas e cantos de jornais foram-me e têm sido espaços de reflexão, oportunidades de, ao mesmo tempo, entender e de contar.

Esses registros de fundos de baú não teriam qualquer importância se o escrevinhador deles se colocasse como apenas passageiro dessa história de Piracicaba diante do mundo e do tempo. Não se trata da vida pessoal do escrevinhador, mas de sua presença nesse tempo e nesse espaço, como observador, como coadjuvante, às vezes como ator, quase sempre como espectador. De alguma forma, na influência tocante e comovedora de Merton, sinto-me, também, espectador culpado. Mas viver é isso, a culpa original, que não se sabe qual seja.

Aprendi a amar Piracicaba a partir de meu pai. E a amar a vida – como um todo, como também um lugar e um tempo nenhuns – esse amor, herdei-o de minha mãe, algo caótico e vulcânico. De alguma forma, penso ter entendido: a força da razão, essa me é herança paterna; emoção, sentimento, paixão, palpitações – paraísos e infernos emocionais, trago-os de minha mãe. Entre os dois em mim, vivi. Sobrevivi.

Estou querendo dizer que, amando passionalmente Piracicaba, eu a transformei em meu mundo, em todo o meu universo. E não acredito seja possível viver de outra maneira senão em sua própria caverna, no útero onde se tem e se rompeu o cordão umbilical. Caminhantes, andarilhos, viandantes, podemos sê-lo por algum tempo, por escolha e por aventura – mas não todo o tempo e nem por escolha ou como opção. O Judeu Errante é um penitente. E sua tragédia está em ser muito mais errante no tempo do que no espaço. O homem tem raízes. No mundo e em seu tempo. As minhas estão aqui, mantive-as. A partir delas pude dar, a meus filhos, talvez a mais singela, mas verdadeira, orientação paterna: “O lar não é o lugar onde ficar. Mas para onde voltar.” Essas coisas, eu lhas disse como pai. Porque, em Piracicaba, plantei o lar deles. Onde fiquei, para onde eles podem voltar.

Essa paixão por Piracicaba se alimentou desde a primeira meninice. Lembro-me de quase tudo, com nitidez assustadora, pois são imagens que se não me apagam na memória, mesmo quando os olhos do rosto já enxergam e vêem menos. Vejo-me ouvindo, entre apalermado e ansioso, a gente que freqüentava a casa de meus pais: Thales de Andrade, João Chiarini, Mário Neme, Leandro e Jaçanã Guerrini, Carlos e Melita Brasiliense, Newton de Mello, os Dutra, Jacob e Oscar e Júlio Diehl, seo Tico da Farmácia, Monsenhor Cecílio Cury, maçons e católicos e ateus, intelectuais e artistas. E a maravilhosa gente do povo: Zulmira, Zinho Muié, Neguito, Zego, Júlio Bruhns, Tangará, o “turco” da Arca de Noé, a judia Dona Helena, a sibilina dona Elvira, dos Belmudes, tios e primos e amigos.

Nesse caleidoscópio de Piracicaba, nasci, cresci. E vivi. E a grande ansiedade – fome e sede, acho que gula e volúpia – foi a de querer conhecer tudo, absolutamente tudo ou, então, o mais que eu pudesse, de minha terra. Foi – não hesito em usar da imagem – como o amante apaixonado querendo saber de sua amada: corpo, alma, espírito, entranhas, respiração, sonhos. Comecei a colecionar coisas. A ler, a ouvir e a perguntar. Mas tudo estava solto no ar, espalhado no mundo. Havia insinuações, coisas não reveladas, meias-verdades e mentiras, histórias reais e o folclore – mas um universo embriagador de pluralidades. Descobri, muito cedo, que o mundo e Piracicaba eram a mesma coisa. Que Proust poderia escrever, daqui, o “A la recherche…” E que Jorge Amado e Érico Veríssimo – o baiano e o gaúcho – contariam as mesmas maravilhosas sagas se as narrassem a partir de Piracicaba.

Neste Fundo do Baú, pois, estou querendo contar não a história pessoal de alguém que viveu, pois isso me soaria pedante e estúpido. Quero contar, sim, o que vi como observador privilegiado, ainda que, também, como espectador culpado. E, então, um fiapo poderoso de memória, me leva à Praça da Matriz, a mesma que se tornou Praça da Catedral. Não sei, ainda hoje, o que houve, o que aconteceu, se foi a declaração do Armistício da II Guerra Mundial, se o final dela. Lembro-me, porém, do povo nas ruas, das comemorações, dos festejos, da alegria. E havia padres, muitos padres, falando e pregando à multidão. Diziam-se missionários, as pessoas também falavam em Missões. Tocava-se o Hino Nacional e a multidão cantava, chorando e rindo. Era, foi uma festa.

 

 

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