Bons tempos

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images (1)Almoçava, fazia lição de casa male má como se dizia e, rua. Só voltava ao anoitecer, sujo como porco; dedão sem tampa, coberto de sangue ressecado e terra. O coro que tomava fazia parte da aventura. Mas valia a pena. Depois a gente até socializava como tinha sido a surra. Eu achava que era pouco pelo que merecia; minha mãe nem que imaginasse saberia o quanto eu aprontava e quanto me fazia de surdo ao seu chamado para levar café para meu pai na barbearia, bem no pico da brincadeira. Não gostava também quando ela me mandava ao armazém do seu João comprar sal, que vinha num saquinho de pano; sardinha, mortadela – nossa mistura oficial; pó de café moído na hora e óleo tirado de um tambor.

Éramos oito, três mulheres e cinco homens. Nos meus dez anos, os irmãos de cima já trabalhavam e só restavam os três últimos, dos quais eu era o líder. Ter vários irmãos é muito bom porque em vez de egocêntrico e mimado a gente se torna mais equilibrado e camarada; além de crescer mais solto, com espaço para daninhar e livre da influência direta das neuras paternas e maternas.

Se eles soubessem que jogamos bosta fresca de cavalo na janela da dona Joaquina; que meu irmão caçula comia toda a mistura da mesa da vizinha dona Lola; que a gente jogava pedra no rancho de lata do seu Pachola só para ele gritar “fiadaputaaaa”; que não foi o rato, mas meu irmão e eu com uma espingarda de chumbo estouramos os vidros cheios de parafusos usados por meu pai; que meu irmão era chamado de cabrita porque berrava “béééé” na porta do Mercadão; que eu apertava a campainha da casa do seu Alcides e corria; via tevê na casa dos vizinhos; dava uma de Tarzan por cima das árvores e passava a mão nas meninas, teriam quebrado a gente.

Só endireitei um pouco depois de virar coroinha na Igreja dos Frades, como a maioria dos meus irmãos. Não me esqueço do dia em que me apresentei ao Frei Miguel. Acho que eu tinha 11 anos. Ele deu um livreto para eu decorar. Latim puro. A primeira fala era do celebrante: “Introibo ad altare Dei”.  A gente respondia: ”Ad Deum qui laetificat iuventutem meam”.  Padre: “Aduitorium nostrum em nomine Domini”. “A gente: Qui fecit caelum et terram”.  Até hoje me intriga a paciência de Frei Miguel em ensinar tudo aquilo e ainda nos fazer sentir honra em ser coroinhas.

Gostava de ajudar a missa. Quando era escalado para a das 5:30 da manhã, minha mãe me chamava às 5 e lá ia eu. Às vezes esperava abrir a igreja junto com as nonas. À tarde brincávamos no quintal do convento. O barracão era o “forte” e o cafezal, que ficava a frente, era a floresta onde ficavam os “índios”, que sempre invadiam e tomavam o forte. À noite Frei Miguel nos reunia para jogar tômbola e ensinar muitas coisas, especialmente sobre Nossa Senhora por quem fiquei apaixonado.

Dentre os vários frades, frei Vital tinha uns 90 anos. Surdo, caminhava com muita dificuldade. Dificil de lidar; era bravo e pelo olhar adivinhava as malandragens que a gente fazia. O único coroinha com quem ele tinha afinidade era o Chiquinho, menino de coração transparente e grande bondade. Chiquinho, que morava no Jaraguá, ficou vários dias sem ir à igreja. Estava doente; a febre não cedia. Certa manhã alguém bateu à porta. Era frei Vital. Foi até a cama onde Chiquinho estava, deu-lhe uma bênção e foi embora. À tarde Chiquinho já estava na igreja completamente são.

Hoje, ser criança é perda de tempo; ser coroinha é cafona; bater nem pensar. Concordo, principalmente tendo pais distantes e fúteis, que se orgulham por terem em casa periguetes precoces e miniaturas de adultos. Além do mais, seria covardia bater nessa molecada insossa, insípida e amorfa como a de hoje, e que nem para aprontar serve.

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