Digno tempo

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images (16)Com o calor tórrido destes dias, surge uma febre terçã, de quando nos sentimos pequeninos demais diante da vida. Elevo os olhos para o vasto céu e vasculho o infinito. Na grandeza astral, professo o apagamento, a pobreza no espírito, a solidão mil vezes abraçada. O silêncio é a minha religião.

Componho a liturgia de todas as coisas, elaborando um calendário em que as esperanças acenam promissoras, prenunciando alvíssaras.

Fazer o que, neste verão de céu azul? O que me salva? Salva-me saber que ontem, menina, busquei o tempo. Além dos vestidos de algodão e da bolsa da escola. O lanche, o abraço da professora, o primeiro medo, a primeira conta. Pela frente, uma vida inteira, a mulher adulta, os cheques por assinar toda a dívida de estar vivendo.

O corpo cresceu e digo que não cabe mais na saudade. Este digno tempo me reporta ao derramamento da poesia em todas as suas instâncias. Quando é madrugada nos meus cabelos ou quando brilha no meu peito a última estrela. A música noturna é um canto marinho de vozes longínquas. Fragor de batalhas, lutas heroicas, velas ao vento e longitudes.

Sofro desta saudade talassêmica, de uma tristeza endêmica, doença que atinge os desavisados, os incautos poetas da graça. Sofro desta aventura mediterrânea, do olfato colado nas maresias, do barco ao mar, do canto das sereias que atraíam os marinheiros à deriva. Sofro de atóis e istmos, sofro das ilhas da Oceania, sofro de uma carta marítima recém-encontrada, sofro da Papua Nova Guiné, da ilha de Vanuatu e de todas as brisas.

Este digno tempo deslumbra em mim a lembrança de terras distantes. Dei para decorar os continentes e seus respectivos países. Exercício bom para afastar o “temido alemão”. Conciliando o sono, repasso os nomes. Sei citar de cor todas as nações africanas, sem pular uma só. Moro na Ilha de Madagascar, a ilha do amor. Vou lá quando quero e tenho uma casa de madeira na árvore. Avisto o invisível horizonte que transcorre em minhas veias insulares.

Ó, geografia do sonho! Em que recanto habita meu pobre e inquieto espírito? Que lugar é este, por favor? O das esperas intermináveis, cujo lema de paciência nos diz que seus frutos são doces? Pois espero, sei esperar. Não tenho ideia do que seja este apelo agudíssimo e do que ele me causa. Apenas deixo-me assombrar.

Estou de vigia. Para ver a queda dos astros, todos os cometas, o segundo sol, a terceira margem, a sétima estrela, a Terra abalada. Todo o fundamento oceânico, as águas vertendo inflexões. Venha sobre nós o colossal aviso divino, a graça em toda a sua plenitude e a glória da ressurreição.

Haveria ainda tanto a escrever. Mas paro por aqui. Santa curiosidade. Ela mata, eu sei. Aliás, uma boa parte deste exército já está morta ou cansada de tanto esperar. Belo tempo, Senhor. Tiro o chapéu para ele. Digno tempo de espera.

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