Doze de outubro. Meu dia.

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Quem tem família e pai empregado provavelmente receberá algum presente É assim no Natal, no meu aniversário e agora no DIA DA CRIANÇA. Não que ache ruim, é bom para virar o comércio e empregar gente; porém, quando entenderão que o presente de verdade sou eu? Deus me manda para relembrar os adultos que a alegria de viver não está no ter, no prestígio ou no poder, mas nas relações. Adianta me dar presentes e deixar para mim um mundo sombrio? Enquanto os adultos não se respeitarem, não forem solidários e justos, nada vai dar certo. Ensinam isso para nós, mas não praticam. Chocou o mundo a foto do corpo de meu coleguinha Aylan emborcado na areia. Adiantou? Quando pela TV viu o garoto sírio dentro de uma ambulância com o rosto coberto de poeira e sangue, meu amiguinho, Alex de seis anos, que mora perto de Nova York mandou bilhete ao presidente Obama: “Você pode, por favor, ir buscá-lo e trazê-lo? Nós estaremos esperando com bandeiras, flores e balões. Nós lhe daremos uma família e ele será nosso irmão”.  Aqui em Piracicaba, uma debutante trocou os presentes que ganharia por fraldas, e as doou ao Lar dos Velhinhos.

Se dependesse de mim o mundo já seria o céu. Minha presença une casais e dá sentido às suas vidas, mesmo quando chego com alguma deficiência. Trago alegria a muitos lares; afinal se me fazem criança eu os faço pais. Eu os levo a descobrir a imensa capacidade de amar escondida em seus corações; a paciência latente, a coragem que pensam não ter e o surpreendente grau de responsabilidade que neles dorme.

Faço vocês voltarem cedo para casa; rolar pelo chão, pagar mico, fazer caretas, falar errado e virarem tolos. Se precisarem passar noites em claro, farão sem maldizer a vida. Quando ficarem maduros e a solidão começar rodear seus passos, volto trazendo-lhes a graça de serem avós. Não os deixo envelhecerem para não se esquecerem jamais que para entender o Reio de Deus é preciso ser criança.

Contudo, muitos recusam a graça que trago. Passarei por suas vidas uma única vez e no lugar de curtirem cada instante de minha presença, terceirizam meus cuidados a parentes ou a pessoas estranhas, justamente na fase mais delicada de minha vida. Outros me deixam o dia inteiro em creches, essas granjas humanas; campos de massificação, onde mães, que também seus filhos deixam, cuidam de mim. Não é um contrasenso? Terei que competir por migalhas de atenção exclusiva, ficar doente ou causar tumulto para ganhá-la. Dá para entender porque na adolescência nossos pais nos parecem estranhos?

Na escola, tenho que engolir o que prepararam para calar meu desejo de saber. Aprendo a ser produtivo, competitivo, funcional, sociável, porém inofensivo, apático, bitolado e sem senso crítico. Cuidam bem do seu corpo, mas meus sentimentos, sonhos, afetos, angustias e desejos ficam às mínguas. Tudo foi pensado para fazer de mim um ‘cidadão de bem’. Seguem modernas teorias de educação, ouvem doutores e mestres, menos a mim. Na cidade casas, prédios e avenidas dominam o espaço. Não pensaram que preciso brincar, correr, empinar pipas, subir nas árvores e interagir com meus colegas?

O sistema de ensino que vocês criaram é eficiente em fabricar cabeças de papelão, por isso mexem no acessório, nunca no essencial. Sirvo para dar votos a políticos, pois meus pais acham que escola boa é escola bonita e bem cotada nos índices do governo. Estamos nos cansado disso. Vocês e eu temos duas orelhas. Se antes de me moldarem a sua imagem e semelhança, vocês me ouvissem, muita coisa poderia ser melhor.

 

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