Ermitão

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Spadotto

Dormia no quarto da avó que guardava, embaixo do travesseiro, os cigarros apagados. Via-a preparar o ritual várias vezes ao dia: picava, miúdo, o fumo prensado no mel que o tio, coronel da força pública, trazia da Bahia, enrolava-o apertado no papel e o acendia com a binga— espécie de isqueiro antigo. Paulo Miranda Pinto aprendera a fumar roubando os cigarros da avó, aos 10 anos.

A família fora morar na casa grande da nona, no Mandaqui — bairro de São Paulo, próximo do Horto Florestal —, enquanto a deles passava por reforma. Fora uma época deliciosa — de andar descalço na rua de terra, de subir em árvore, de pular de cipó, de jogar bolas de gude —, brincadeiras do Paulo menino. Com 10 anos, ele queria aprender tudo. À época dos festejos juninos, não desgrudava dos primos mais velhos que construíam e soltavam balões enormes, de papel de seda, no Santo Antônio, no São João e no São Pedro. Adorava vê-los subirem alto e saía correndo para pegá-los ao caírem.

Nascera em meados do século passado, em 1946, em São Paulo, em casa mesmo. A mãe, após perder o primeiro filho por complicações no parto, na maternidade do Hospital São Luís, resolvera recorrer ao serviço de Dona Aparecida, a parteira — a mesma que o menino Paulo, aos 5 anos, saíra a buscar, quando do nascimento da irmã Heloísa. O pai encontrava-se ausente.

A convivência com a velha avó cafuza — filha de pai índio com mãe negra — trouxe ensinamentos que não aprenderia nos livros. Certa vez, andando pelos caminhos de terra, Paulo fora picado por uma cobra. Amedrontado, correra a pedir auxílio. A avó, de pronto, pegou um bocado de fumo picado e mascou-o. Em seguida, mandou o menino urinar sobre a concha da mão, misturou tudo num emplastro escuro e viscoso e o colocou sobre a ferida. Funcionou. O ferimento cicatrizou sem nenhuma complicação.

A nicotiana tabacum é a planta que dá origem ao fumo, conhecida, há séculos, pelos indígenas, que a utilizavam como planta medicinal com propriedades antiparasitárias, narcótica, inseticida e cicatrizante de feridas.

Pesquisando na internet, encontram-se, facilmente, receitas caseiras de inseticidas a partir do tabaco. A substância, normalmente misturada à água e a outros produtos, resulta num composto que pode ser borrifado nas plantas. No entanto o fumo é insolúvel em água, reduzindo a eficácia do pesticida. Pesquisadores do laboratório de análise térmica e de polímeros do departamento de Química da UNESP — Universidade Estadual Paulista — de Bauru desenvolveram um hidrogel de tabaco — um tablete totalmente solúvel em água, obtido a partir de procedimentos químicos verdes e utilizando produtos de descarte (cigarros contrabandeados apreendidos). Além de contribuir para reduzir o impacto da destinação do produto nocivo, foram felizes em fazer uso da química verde, cujos princípios são buscar a eficiência com o menor impacto ambiental possível: não gerar resíduos; utilizar solventes amigáveis ao meio ambiente e empregar fontes limpas de energia, como a luz.

De volta ao quintal paulistano, apesar da liberdade infantil para as brincadeiras, Paulo tinha limites e horários certos para almoçar, para jantar e para fazer a lição de casa. Quando finalizou os estudos, prestou concurso para funcionário público. Serviu como delegado de polícia federal em várias cidades, como Corumbá, no Mato Grosso, mas, na maior parte do tempo, morou na cidade de São Paulo. Casara-se, em segundas núpcias, havia 44 anos, com Elíria. Depois que se aposentou, foi morar na pacata Águas de São Pedro, que conhecera nas férias de 1992.

Durante toda a sua vida, o tabagismo fizera parte de sua rotina de vida e de trabalho e, por pelo menos quatro vezes, conseguira parar de fumar ficando, em cada uma delas, de 2 a 3 anos em abstinência. Quando o conheci, no meu consultório, no final de 2022, fumava um maço de cigarros em três dias. No retorno da consulta, poucos meses após, contara-me que deixara, novamente, de fumar.

Segundo o Instituto Nacional do Câncer — INCA —, estudos mostram que, em média, o ex-fumante tenta parar entre três a quatro vezes até conseguir, definitivamente. A cada tentativa, conhecem-se as maiores dificuldades e aprende-se a controlá-las, sem fumar. Por exemplo: você resolve parar de fumar e, ao estar diante de uma situação de estresse, pensa em fumar um cigarro como solução para se acalmar. Com o tempo, você vai aprendendo que, além do cigarro não resolver seus problemas, ele está tirando sua saúde.

Aos 77 anos, Paulo declara-se um ermitão. Prefere sua casa e os arredores a sair e a viajar. Contou-me que os colegas da turma do curso de delegados insistiram para que fosse a um encontro na Chapada dos Guimarães, mas ele não se animou.

Conversamos numa tarde quente de domingo e precisamos encerrar logo o papo porque ele tinha um compromisso importante que prenderia, por algumas horas, toda sua atenção — o jogo de futebol do São Paulo. Despedi-me, desejando sorte.

*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.

*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.

A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.

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