Disciplina e Ar Puro

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Concentrado, de postura ereta e com os pés posicionados na largura dos ombros, o competidor aguarda o lançamento do prato cerâmico, que pode seguir qualquer direção, em qualquer velocidade. Sempre olhando para a mira da espingarda, procura, num amplo campo de visão, o objeto arremessado. Quando o encontra, puxa o gatilho e continua movimentando o cano da arma, como para fazer voar o tiro em direção ao prato. O alvo em movimento, com velocidade que pode atingir até 180km/h, desafia a perícia dos atiradores e, quando atingido, desfaz-se numa nuvem rósea de pó. Marcou-se um ponto.

Raphael Bortolazzo, 41 anos, fora competidor e instrutor de tiro ao alvo cerâmico, uma modalidade de tiro esportivo, por quase vinte anos, até o nascimento de sua filha Eva. Piracicabano da Vila Rezende, teve uma infância comum e feliz até os oito anos. O pai, Natalino, e a mãe, Aurora, eram fumantes. Muito jovem, ela desenvolvera uma doença rara no pulmão que lhe provocava intensa falta de ar e fadiga. Dirigiam-se, de tempos em tempos, ao hospital da Unicamp — Universidade de Campinas — onde se tratava e fora inscrita numa fila de transplantes de pulmão. Seu martírio finalizar-se-ia após dez anos, quando, exaurida, falecera aos 51 — Raphael contava apenas 18 anos. A tragédia familiar, para ele, coincidira, ironicamente, com seu início no tabagismo.

No começo, pegava os cigarros dos amigos, enquanto dançavam nas festas da Mr. Dandy, da Croco ou da Club Hell. Durante seis meses, fumava somente aos finais de semana. Dos amigos adolescentes, recém-saídos do Ensino Médio, muitos se tornaram fumantes ativos. Raphael só se percebera aprisionado pelo vício quando passara a comprar os próprios cigarros.

Por que um jovem que viu, de perto, as mazelas que o tabagismo provoca, começa a fumar? Os pais ou os responsáveis, os parentes, os professores, os ídolos e os amigos exercem grande influência sobre os jovens. Os pais dão mau exemplo quando fumam e quando permitem que seus filhos o façam, promovendo a aceitação social, incentivando e contribuindo para o uso. Os jovens desconhecem os problemas de saúde que o fumo pode causar, ou com eles não se preocupam; não acreditam que podem se tornar dependentes da nicotina; desconhecem, tristemente, as dificuldades quando se tenta abandonar o vício. Outro fator que explica o grande número de adolescentes fumantes é a venda ilegal de cigarros a menores de 18 anos. Dados da Vigilância do Tabagismo em Escolas — VIGESCOLA — informam que a maioria dos adolescentes que participou da pesquisa afirmou nunca ter sido impedida de comprar cigarros devido à idade.

Casara-se, em 2012, aos 30 anos, com Flávia, após longo namoro de uma década. Construíram uma casa para morar e montou a Top Rio Ferramentaria, indústria metalúrgica para a fabricação, a reforma e a manutenção de cilindros hidráulicos. Por várias vezes, Raphael tentou abandonar o tabagismo com tratamento médico, mas conseguira ficar apenas trinta dias sem fumar. A fábrica crescera com a chegada de contratos que atendiam a pequenas e a grandes empresas, do porte da Klabin, da Vale, da Gerdau e da Engie. Aumentavam, na mesma proporção, a preocupação e a ansiedade e, assim, recaía no vício. Consumia vinte cigarros por dia, mas nunca o fazia dentro de casa.

A fumaça que o fumante traga é chamada de corrente primária. A que sai da ponta do cigarro, de corrente secundária, e de corrente terciária, a que permanece no ambiente, contendo inúmeros compostos tóxicos, como as nitrosaminas, cancerígenas. A superfície dos móveis, o revestimento dos estofados e das cortinas, tudo fica impregnado, pode permanecer nesses objetos por dias, semanas ou até meses e representa riscos à saúde. Fica claro que, para proteger a família, não basta apenas o fumante acender os cigarros num outro cômodo da casa, abrir uma janela para dissipar a fumaça, ou sair para uma área externa.

Aproximava-se a data do nascimento da filha e, com o incentivo de Flávia, que sempre levou um estilo de vida saudável, incluindo boa alimentação e rotina de exercícios, resolveu pedir minha ajuda para parar de fumar. Membro da CBTE — Confederação Brasileira de Tiro Esportivo —, Raphael competiu e treinou em clubes de Americana, de Campinas, de Araras e de Charqueada, onde o ambiente é livre de tabaco, já que cumprem a lei que proíbe o consumo de cigarros e derivados em áreas comuns. Os seguidos anos na rotina de treinamento com o tiro esportivo trouxeram-lhe qualidades e atributos ímpares para a vida: a disciplina, a concentração, a persistência, a agilidade e o reflexo.

Quando Eva nasceu, há três anos, não havia mais resquício das 4700 substâncias do tabaco depositadas nos ambientes nem nos móveis da casa e o pai pôde carregá-la, segura e protegida, nos braços.

*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.

A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.

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