Entre o público e o privado

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Morava na chácara da família no Jardim São Paulo, em Piracicaba. Não tinha vizinhos e nem amigos. Sua melhor companhia era o avô Manoel que sempre trazia um cigarro pendurado na boca — aceso ao apagado. Chegava a queimá-lo por inteiro e, suas cinzas, a caírem ao chão e se apagar. Não tragava.

— Vô, por que o senhor fica o dia todo com o cigarro na boca? — perguntava o menino.

— É que a fumaça afugenta os mosquitos — ensinava o avô.

— Mas o cigarro está apagado! — constatava o garoto.

— Ah, mas os insetos não sabem disso! — respondia o avô, brincalhão.

Experimentou o primeiro cigarro, roubado do maço de Continental sem filtro do nono, aos 9 anos de idade. Aos 13, saía para comprar seus próprios cigarros. Gostava de Pall Mall, Marlboro e do Benson & Hedges Mentol.

Os cigarros com mentol liberam sabor agradável de hortelã, refrescam e entorpecem a garganta e, assim, mascaram a aspereza da fumaça do tabaco, tornando mais fácil para os fumantes iniciantes tolerarem o tabaco. Concluiu-se que os jovens que começam a fumar com os cigarros mentolados têm maior probabilidade de se tornarem dependentes e fumantes regulares. Com a resolução 14/2012 da ANVISA, o Brasil tornou-se o primeiro país no mundo a proibir todos os produtos derivados do tabaco que contivessem sabor ou aditivos, inclusive o de menta. Porém, a norma de fato entrou em vigor somente 8 anos depois, em 2020, quando o TRF validou a competência da ANVISA, bem como a constitucionalidade da RDC que trata do tema, depois de longa batalha judicial contra a indústria do cigarro.

Estudou nos colégios tradicionais de Piracicaba: Assunção, Dom Bosco e, na adolescência, no CLQ. Durante o terceiro colegial, fora presidente da comissão de formatura e também o orador da turma. O professor de português, Mendes Thame, vaticinara: “Rapaz, um dia você será o prefeito dessa cidade!” O mestre e engenheiro agrônomo, uma vez prefeito e vários mandatos deputado federal, ainda viu o ex-aluno Luciano Santos Tavares de Almeida eleger-se prefeito de Piracicaba em 2020.

Luciano tornou-se fumante regular de cigarros. Consumia 20 por dia. Nunca quis experimentar drogas ilícitas, por receio de perder o controle de si. Formou-se na UNIMEP em administração de empresas e se pós-graduou em administração e gestão de negócios internacionais em 2003, na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Aos 22 anos começou a trabalhar nas empresas da família, o Grupo Tavares de Almeida — holding com participação em diversas empresas como a Velho Barreiro, o Banco Luso Brasileiro, o Casagrande Hotel, entre outras.

Na primeira vez que parou de fumar, em 1998, seu filho tinha 3 anos. Fora convidado pelo então prefeito Barjas Negri para assumir a secretaria municipal da indústria e do comércio. Em casa, não permitia que os filhos entrassem no escritório — fumava de portas fechadas. Não queria que tivessem contato com a fumaça. Resolveu procurar ajuda quando o pequeno Luciano Filho dissera, chorando, ao ser impedido de entrar:

— Papai, você gosta mais de cigarros do que de mim!

Passou uma temporada, junto da esposa Andréia, no spa do paradisíaco Casagrande Hotel na praia de Enseada, no Guarujá, com jardins tropicais permeados por piscinas e restaurantes à beira-mar. Correram na praia, fizeram aulas de hidroginástica, de tênis e de aeróbica; as refeições eram balanceadas e dormiam muito cedo. Em 1 semana perderam 6 quilos e largaram os cigarros.

Luciano conseguiu permanecer 7 anos sem fumar. A recaída aconteceu naquele mesmo local, durante as comemorações de uma noite de réveillon. No exato momento da virada, Luciano pegou o cigarro de um amigo. No dia seguinte, fumou um maço inteiro de Marlboro e assim continuou como se nunca houvesse parado um dia.

Sua carreira política expandiu-se quando, de 2008 a 2009, atuou como secretário adjunto do vice governador Alberto Goldman, na gestão de José Serra e, posteriormente, como secretário de desenvolvimento econômico, ciência e tecnologia do Estado de São Paulo. Contou que o Sr. Goldman fumava charutos dentro de seu gabinete, sem nenhum pudor. O leitor deve se lembrar que foi José Serra, quando ministro da saúde do governo FHC, que implementou a lei nº 9244 de 1996, que proíbe fumar em ambientes fechados coletivos.

Certa vez, quando residia em São Paulo, parado no congestionamento da avenida Rebouças e dentro de um carro oficial do governo, Luciano lançou, através da janela, uma bituca ao chão. Do carro ao lado, um cidadão o advertiu sobre o ato incorreto e questionou sua identidade. Alguns dias depois, tendo o fato chegado às mãos da jornalista Mônica Bergamo, foi manchete no Estadão.

Basta caminhar pelas ruas de qualquer cidade brasileira para ver dezenas de bitucas de cigarro por todo o lado. Pequenina, parece inofensiva quando lançada nas ruas e avenidas, mas o estrago que causa é imenso. Ela contém mais de 4,7mil substâncias tóxicas que contaminam solo, rios e córregos além de levar até 5 anos para se decompor, principalmente se for jogada no asfalto.

Na segunda vez que decidiu tratar o tabagismo, sentiu muito mais dificuldade. Havia se consultado com um médico da cidade que o assustou com o diagnóstico de enfisema pulmonar. Novamente buscou ajuda no spa do Casagrande Hotel e, com resignação, conseguiu se livrar do vício.

Percebeu a saúde mais fortalecida, o fôlego melhorou e notou, ao contrário de quando fumava, quase nunca mais pegar um resfriado. Gosta de passear com a motocicleta Kawasaki KLR 650, mas lamenta ter que usar capacete. Por isso comprou uma Mercedes 2009 conversível para poder sentir o vento no rosto. Luciano não concorda com o cerceamento dos direitos individuais dos cidadãos, como a obrigatoriedade do uso de capacetes ou do uso do cinto de segurança. Confessou que, na época em que se permitia fumar dentro dos aviões, reservava passagem nas poltronas comuns, mas deslocava-se até a área dos fumantes para acender seu cigarro.

Acredita que o futuro da humanidade deve passar pela busca de um estilo de vida mais saudável através da implementação de políticas públicas voltadas ao bem coletivo. Sabe que remamos contra a força das indústrias fortes como a do tabaco e a dos alimentos ultraprocessados. Recordou-se de quando esteve no Festival de Parintins, às margens do rio Amazonas, para assistir à tradicional disputa entre duas agremiações: a do Boi Caprichoso — que usa a cor azul — e a do Boi Garantido — que se veste na cor vermelha. Viajou a convite do presidente latino-americano da Coca Cola e pôde constatar sua potência: Parintins é a única cidade no mundo em que há latas e garrafas do refrigerante na cor azul, além da tradicional vermelha.

Entristece-se ao lembrar que a sobrinha use cigarros eletrônicos e a filha Beatriz, de 27 anos, fume palheiro. A história, infelizmente, se repete com as novas gerações, mostrando a perversidade da indústria, sempre um passo à frente.

*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.

*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.

A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.

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