Essa febre…
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Houve um tempo maravilhoso, com gosto de espiga de milho assada na brasa, no sítio mais lindo do mundo. Deus Pai! Quanta conversa deliciosamente jogada fora, sob o luar de prata, enquanto São Jorge lutava com o dragão.
Neste sagrado reduto da crônica, dá uma baita vontade de evocar o pano de louça branquinho, secando no varal; verdura colhida na horta; fruta apanhada no pé; pijama de flanela; leite tirado da vaca cedinho; doce de mamão verde; queijo fresco; cheiro de café coado na hora e os causos de lobisomem, Saci-Pererê, assombração. E depois, pra pegar no sono? Lá vinha a mão peluda saindo debaixo da cama, apertar o pescoço da gente. Misericórdia.
Hoje não há mais noites, galos e quintais. Raros exemplares destas preciosidades resistem aqui e ali, mas não com o mesmo lirismo e a mesma beleza. Tudo mudou tão drasticamente, que evito argumentar. Houve um tempo digno em que os professores eram respeitados na sala de aula, pedia-se a bênção aos pais e aos parentes mais velhos. Os homens tiravam o chapéu, numa reverência respeitosa, quando passavam em frente de uma igreja. Cansei de ver meu pai fazer isso. As moças eram chamadas de “casadoiras” e as pessoas sentiam vergonha de dizer certas coisas em público, porque se tratava de intimidades absolutas.
Ainda guardo no peito essa febre antiga. E assim, em estado febril, vem o delírio. Haja alumbramentos na madrugada. Mas haja também um coração à escuta. O que é que você ouve? Eu ouço tudo, no silêncio duro de pedra. Se não houver esta capacidade auditiva de captar o insonoro, nada feito.
Há coisas invisíveis e impalpáveis no reino imaterial. Contudo, atuam fortemente dentro e fora de nós. São Bernardo dizia que não podemos ver o Espírito Santo, mas percebemos Sua presença pelo movimento do nosso coração.
A casa do coração, creio eu, pode ser a mais simplesinha possível, mas é este sentimento poderoso que conta. Sem ele, construímos nossa morada na areia. Temos de edificá-la sobre a rocha. Não é preciso cultivar uma erudição muito da cultíssima, nem anel, nem diploma. Dona Vida tem ensinado uma porção por aí. Importa aquele brilho nos olhos, a festa da alma.
Bom, e a poesia? A febre da palavra? Ainda tem poeta remanescendo nos desvãos da vida. Um amigo me escreveu que está grávido dele mesmo. Pode uma coisa dessas? De turrona, vou lá de mansinho, sem fazer barulho, penetro surdamente no reino das palavras, e fecho a porta. Pego o verso dele e rumino as ideias. Oh, e não é que isso me acontece o tempo todo? Vivo grávida de mim. O parto não acontece. Estou entalada no meu próprio ventre. Autoconcebida para sempre. Quando é que a gente nasce de verdade?
Temos de nascer, em algum momento. E cumprir o que nos cabe. Com a febre na alma. Você está pensando exatamente isso: que a vida carece de um sentido. Pois meu objetivo não teria sido outro, senão o de chegarmos juntos a esta sábia inquietação. Pois me diga, tem coisa melhor? Você aí, diante do jornal, tomando seu café. E no infinito de todas as coisas, a vaga nostalgia de abril. Febril.