Jéssica

Os textos de diferentes autores publicados nesta seção não traduzem, necessariamente, a opinião do site. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Ilustracao-Jessica

Uma semana antes, como a avisar, o corpo de Jéssica Amorim Lima dera os primeiros alertas — uma dor intensa e forte no braço direito —, que lhe incomodara de forma intermitente e progressiva, além do descontrole da pressão arterial. Tomara analgésicos para amenizar. Pouco depois, nas primeiras horas de um dia frio de inverno, em junho de 2020, a dor viera bem mais forte, com início súbito, como se algo a rasgasse dentro do peito. Assustara-se, ao perceber o corpo molhado de suor e a demora em encontrar alívio. Dirigira-se à UPA — Unidade de Pronto Atendimento — da Vila Rezende, e recebera o diagnóstico de infarto agudo do miocárdio. Jéssica tinha apenas 29 anos.  Após 3 dias, fora transferida para o HFC — Hospital dos Fornecedores de Cana —, onde realizou cateterismo cardíaco. Com três, das três artérias coronárias comprometidas, submeteu-se à desobstrução por meio de angioplastia e de implante de stent.

Em maio de 2023, participei do primeiro Congresso Brasileiro de Cardiologia da Mulher, em São Paulo, quando se discutiu o tema em prol da redução da morte, entre elas, por doença cardiovascular. A mortalidade por infarto entre mulheres jovens no Brasil encontra-se em crescimento e menos da metade delas recebe o tratamento adequado para prevenir, ou para tratar, esse problema. Esses são dois dos principais alertas de um recente posicionamento sobre a saúde do coração feminino, lançado pela SBC — Sociedade Brasileira de Cardiologia. A entidade chama a atenção para todas as falhas na cadeia de prevenção, de diagnóstico precoce e de tratamento do ataque cardíaco na mulher. Na contramão das estatísticas de três décadas, em que se vê queda no percentual da taxa de mortalidade por infarto no Brasil, nota-se aumento nos números específicos de mulheres mais jovens, que, supostamente, estariam protegidas pelos hormônios. O número de casos de ataque cardíaco entre brasileiras de 15 a 49 anos saltou de 7,1 mil casos, em cada 100 mil habitantes em 1990, para 11,6 mil casos em 2019. Nesse período, aumentou em 7,6% a taxa de mortalidade entre elas.

Jéssica começara a fumar 9 anos antes, aos 20, acompanhando o namorado Juninho. No início, só nos finais de semana, nas baladas das casas noturnas Mr. Dandy e Mosaic. Gostavam dos cigarros com sabor: LA, de cereja, ou Black, de cravo. Logo, o casal passara a fumar, cada um, um maço por dia e, aos cigarros, agregaram, nas folgas, a cerveja — cerca de 6 garrafas. Ficaram casados durante dez anos e não tiveram filhos. Separaram-se há 4.

Nascera em Piracicaba, no bairro do CECAP Eldorado. Filha única, foi praticamente criada pela mãe, Ivonete, num ambiente familiar conturbado. Marcelo, o pai, gastava tudo o que ganhava nos serviços de marcenaria em bebida alcoólica e em drogas. Internavam-no em clínicas de reabilitação, onde ficava até 6 meses, mas quando voltava a trabalhar, o ciclo recomeçava. Aos poucos, consumiu todo o patrimônio da família e passou a morar nas ruas. Seu último “endereço” foram as calçadas da rua São João, esquina com a Moraes Barros. Sofria com hemorragias digestivas, causadas pelo alcoolismo, até que, aos 49 anos, o encontraram morto. Quatro dias depois, Jéssica fora localizada e pôde reconhecer o corpo do pai. Era fevereiro de 2022.

As mulheres apresentam, frequentemente, fatores de risco cardiovascular não tradicionais, como o estresse mental e a depressão, e sofrem as consequências das desvantagens sociais devido à raça e à renda, além daqueles gatilhos clássicos, comuns a ambos os gêneros: pressão alta, diabetes, sedentarismo, obesidade, colesterol elevado e tabagismo.

Nessa época, Jéssica continuava sofrendo os mesmos sintomas de outrora. Trabalhava como balconista no Mercadão Municipal, na banca Pandolfi Massas e Frios. Lá, conheceu Natália, proprietária da banca de frutas, que leva o mesmo nome, e iniciaram um relacionamento. Incentivada pela companheira, buscou minha ajuda para tratar a doença cardíaca e isso incluía a cessação do tabagismo. Realizou uma série de exames diagnósticos e passei-lhe uma lista grande de medicamentos. Ao fim de três meses de acompanhamento, Jéssica livrou-se dos cigarros e teve sua angina controlada. Hoje, vislumbra um futuro mais claro e promissor. Com Natália, faz planos de se casar, oficialmente. Há um ano, moram juntas. Até já compraram e mobiliaram um apartamento no bairro Nova América. Certamente, nova será sua vida, mais feliz e mais saudável.

*Dra. Juliana Barbosa Previtalli – médica cardiologista, integrante do Corpo Clínico da Santa Casa de Piracicaba; diretora científica da SOCESP regional Piracicaba; idealizadora do projeto antitabagismo “Paradas pro Sucesso”.

*Erasmo Spadotto – cartunista e chargista, criou a ilustração especialmente para este artigo.

A Província apoia o projeto e a campanha antitabagismo “Paradas pro Sucesso”. Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG Paradas pro Sucesso.

Deixe uma resposta