Salsichas

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downloadNão gostaria de ser criança nos dias de hoje. Começa que provavelmente seria filho único ou teria no máximo mais um irmão, com sorte uma irmã. Ser único deve ser um saco. Os pais não dão um tempo. Teria que lutar muito para não virar sua imagem e semelhança, pois, diretamente exposto à sua influência, minha visão de vida e de mundo seria conforme a deles.  Filhos não são extensão dos pais e nem troféus.

Ser a si mesmo é a necessidade mais profunda do ser humano. Mesmo ricos e poderosos, a insatisfação sempre nos perseguirá se esse clamor não for atendido. Aliás, não tem como ser poderoso e rico sem abrir mãos da própria essência. Quem possui a si mesmo tem toda a riqueza e poder que precisa. “O mundo inteiro se abre quando vê passar uma pessoa que sabe aonde vai” (Saint-Exupéry). À pergunta de Moisés sobre quem era, Deus responde: “Sou o que sou”.

Por isso, segundo Napoleon Hill “A melhor ajuda que um pai pode dar a um filho é deixá-lo fazer por si mesmo”. E segundo Nietzsche “Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar o rio da vida – ninguém, exceto tu, só tu”. Preocupados com sucesso material, os pais de hoje teriam sensibilidade suficiente para que não acabem virando crisântemos as orquídeas que receberam? Nesse aspecto, “crianças tapam os ouvidos aos conselhos e abrem os olhos aos exemplos”.

Éramos oito e minha mãe sempre estava em casa. Quando as consequências de minhas traquinagens me ameaçavam ao extremo, era ela que eu disfarçadamente procurava. Lambuzei-me de infância. Comecei a escola por volta dos sete anos. Hoje, começam aos três e nem tabuada sabem. Não sei como faria levado à creche desde os seis meses. Não teria viajado mundo afora com meu caminhãozinho de madeira. A rua não teria sido meu mundo. Não teria rolado na terra, deitado na enxurrada, jogado bola em pastos, rodado peão, armado arapucas; brincado de mocinho, balança caixão, pais e passa-anel. Não teria andado sobre muros, subido em árvores, batalhado meu próprio dinheiro e nem resolvido sozinho as encrencas que arrumei. Pior ainda, os anticorpos que adquiri andando descalço com o dedão destampado, tomando chuva, catando ferro-velho, pegando ratos pelo rabo, sendo mordido por carrapatos e pulgas que infestavam nossos colchões de palha e comendo porcarias pelas ruas não existiriam, e eu viveria no pediatra. O máximo que tive foi sarampo, caxumba e lombriga, coisas que minha mãe mesmo resolvia.

Com o ECA, talvez não tivesse tomado as pedagógicas surras de meu pai, que para mim representava a maior autoridade do mundo. Disse talvez porque senhor de si como era, duvido que deixasse um Estado omisso, injusto, corrupto e violento como o nosso interferir em casa como faz hoje. Criou os oito com o próprio suor. Todos se saíram bem. Também eu não teria curtido a satisfação de começar trabalhar de fato aos 12 anos. Sentia-me um homem por poder ajudar em casa. Passei a usar calças compridas e comer um ovo inteiro de mistura no almoço. “A privação fortalece as pessoas – como diz Pramote Boonsanong – enquanto o conforto as enfraquece”.

Certamente minha vida seria outra. Teria sido cuidado e educado por muitas mãos, todavia, perdido minha referência. Condicionado pelo método da recompensa seria um adulto cooperativo, criativo e empreendedor, porém insensível, autosuficiente, tapado, com a cabeça enfiada no computador e obeso.

Deus continua mandando gênios para melhorar o mundo. Porém, há uma poderosa estrutura organizada para transformá-los nas salsichas que alimentam um sistema de morte. Quem escapa fica pelas ruas ou vira caso de psiquiatra.

Quanto a mim como diz Milton Nascimento “Há um moleque, há um menino dentro do meu coração, toda vez que o adulto fraqueja, ele vem me dar a mão”.

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