Boias-frias e estrelas

Perdi, há algumas semanas, um amigo com pouco mais de 40 anos de idade. Ele era como um irmão caçula. Atordoei-me com sua morte repentina, pois esta é a mais dolorosa para os que ficam. Era um jovem homem na plenitude de sua vitalidade orgânica, vivendo a vibração e o incontrolado “frisson” de hormônios e glândulas exuberantes. Ele tinha um raro talento para a possuir coisas, ambicioso no que fazia e com o que sonhava, frenético na sua pretensão alucinada de possuir o mundo. De repente, a força vulcânica desapareceu. E meu amigo acabou-se em si mesmo.

Como herança, deixou bens, muitos bens, um inventário volumoso de poses e de propriedades. No entanto, apenas duas ou três pessoas lamentaram-se de sua morte. Pois ele nada fez por ninguém, embora os seus amigos soubéssemos que pretendia fazer muito para todos. Mas era apenas pretensão pois, no dia a dia, ele nada ofereceu a ninguém, a menos que alguém pudesse ser-lhe útil, usável para suas ambições.

Morto, dele nada ficou, a não ser a fortuna que começou a ser discutida, repartida, razão e causa de disputas e de desentendimentos. Estivemos juntos apenas dois dias antes de sua morte. Ele queria beber e bebeu muito. Era como se tivesse intuição de que algo ruim iria acontecer-lhe. Então, aos eflúvios da bebida, foi-se-lhe abrindo o coração, mostrando-se verdadeiro, aberto, despido. Era um coração de criança. E, no mais fundo dele próprio, o mundo todo que ele pretendia conquistar se resumia, apenas, em brinquedos de criança que lhe faltaram no mais longe de sua infância.

Homens, quando não fomos crianças verdadeiras, acabamos por acreditar, quando adultos, podermos fazer, da vida, o brinquedo que nos tenha faltado. Brincamos, então, de crueldades, de competições, de destruições uns dos outros, como se o mundo, transformado em brinquedo, pertencesse exclusivamente a cada um de nós. Na vida adulta, o homem apenas sabe dar parte de seu todo se, quando criança, tiver repartido o que teve. Isso, talvez, explique porque pobres – que se tornam ricos – e ricos – que sempre foram ricos – tenham comportamentos tão parecidos: não repartem. Uns por, antes, nada terem tido. Outros porque não lhes foi ensinado a beleza do repartir.

Ser companheiro significa repartir o pão, o “cum panis” O pão compartido faz os companheiros. É o “pão com”. As palavras, porém, não têm mais importância. E quero refletir não a respeito da morte de meu amigo, mas sobre a embriaguez que o levou a desnudar o coração. Deveríamos respeitar mais a bebedice de homens solitários, por serem sofridos e carentes. Pois pouco resta, ao amargurado homem de hoje, além de uma mesa de bar, de reuniões íntimas, encontros entre quatro paredes, onde possam revelar que ainda têm coração palpitante. São mínimas as saídas: confessionários escassearam-se, dando espaço a divãs de psicanalistas; amantes vão-se tornando esposas por esposas esquecerem-se de ser amantes.

Tenho-me perguntado do porquê de tantas, em número crescente, embriagarem-se, drogarem-se, atordoando-se e narcotizando-se. E a resposta é uma outra pergunta: não seria por que lhes foi roubado o sonho que tiveram? Pois não há quem possa viver sem o sonho. E, hoje, sonhar parece possível apenas anestesiando-se. Pois não há mais sonhos revelados , mas sonhos retidos, comprimidos por trás de carcaças individuais. Quando elas, as carcaças, caem, eis que os sonhos surgem de cada peito oprimido e, então, todos percebem que têm desejos e sonhos semelhantes.

Penso nisso, hoje, não apenas por causa do amigo que morreu, mas pelo que ele deixou escapar-lhe do coração. Na verdade, penso nele e em outras embriaguezes, em outras mesas de bar, em outros recintos fechados, onde presenciei e ouvi desabafos de pessoas de todas as classes. Certa noite, mais longínqua, vi, a meu lado, outro poderoso industrial – quase imbatível em seu poderio – embriagar-se como quem desejasse estraçalhar-se por dentro. Dono de um império, podendo realizar todos os seus desejos materiais, ele lamentava-se por não ter ido em busca do grande sonho: ele queria ser astrônomo. Jurava ser capaz de trocar tudo para ficar olhando o céu, perscrutando estrelas.

O poderoso homem queria, como o poeta, apenas ver e ouvir estrelas. Ele queria extasiar-se com estrelas. Mas, dele, dependiam família, funcionários, milhares e milhares de bóias-frias. E ele, pobre homem, não conseguira enxergar e perceber que um único bóia-fria, tão próximo dele, era mais importante do que as miríades de estrelas tão distantes. O seu não era sonho, mas fuga. Ou fugir é, também, uma forma de sonhar?

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