Tecendo a colcha no chão da praça

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A geógrafa Marina Moreto: “Ser educador de menino de rua pressupõe haver uma disposição emocional individual”.

“Um desejo muito grande de mudar alguma coisa num Brasil tão desigual” leva profissionais de diferentes áreas a encontrarem sua missão como educadores sociais de rua, na opinião da geógrafa Marina Moreto. Autora da dissertação “A educação e a arte nos entrelugares da rua – uma história de educadores e meninos de rua”, orientada pelo professor da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp Rogério Adolfo de Moura, Marina lembra que a situação de rua é muito presente nas metrópoles brasileiras. Educadora social de rua por vocação, ela explica que o que muito se vê é somente uma tentativa de retirada dos meninos da rua, sem um trabalho que seja socioeducativo. “Acredito que essa motivação por fazer algo diferente por uma população tão à margem é algo instigante nas pessoas”.

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“Arrisco dizer ainda que nem somente os chãos das praças podem ensinar esse trabalho. Ser educador de menino de rua, assim como ser professor, psicólogo, médico, ou seja, trabalhar com gente que sofre, pressupõe haver uma disposição emocional individual, uma vontade própria, um impulso, um desejo que não tem a ver com a formação acadêmica, mas com a empatia com o outro, por acreditar que a relação com o outro pode ser vetor de uma mudança individual e social”, faz questão de reler com ênfase a educadora e ex-coordenadora da Casa Guadalupana. A dissertação é redigida assim mesmo, em primeira pessoa, alinhavando sua experiência como educadora social à reflexão das metodologias utilizadas pelo educador de rua, bem como a relação entre este profissional e os meninos.

Marina foi atraída pela proposta de entender como as artes são usadas com meninos em situação de rua. “Sempre gostei de arte-educação. Descobri o mundo no Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação (Laborarte) da Faculdade de Educação, ao mesmo tempo em que me especializei em psicanálise e arteterapia para fundamentação teórica de minha pesquisa”, explica Marina. A dissertação, de acordo com ela, mistura educação, arte, situação de rua e políticas sociais.

A ONG Mano a Mano, grupo de extensão da Unicamp, e a Casa Guadalupana, setor da ONG Instituição Padre Haroldo, que era cofinanciada pela Prefeitura de Campinas, são lembradas para destacar algumas metodologias desenvolvidas para o trabalho com os jovens. Entre dez projetos desenvolvidos com os meninos, Marina destaca o Zine Meninos Românticos, revista mensal feita pelos próprios meninos, com poesia, texto, fotos, montada por um educador em parceria com o grupo. Segundo Marina, esta revista tinha tiragem de mil cópias por mês, distribuídas entre meninos, serviços públicos e alguns pontos de cultura da cidade.

Além do Zine, os meninos participavam de projetos como “Maracatu”, no qual desenvolviam atividades desde a construção de instrumentos até aulas para executá-los. Neste projeto, eles formaram um bloco de carnaval puxado por meninos de rua. Marina também faz questão de citar o projeto de alfabetização, desenvolvido não simplesmente para letramento, mas também para dar segurança para que eles pudessem ir para a escola. Dentro dessas atividades, os meninos eram levados a passeios mensais em lugares como Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), acampamentos do Movimento Sem-Terra (MST). Na dissertação, as descrições das atividades são fundamentadas pela pedagogia social de Paulo Freire.

Na abordagem, não poderia faltar a colcha, uma metodologia desenvolvida pela Mano a Mano e adotada pela Casa Guadalupana, em que os educadores iam para as ruas com uma caixa, uma colcha de cama de casal e esperavam os meninos se aproximarem para brincar sobre aquele pedaço de pano, criando um universo, regado a conversas, brincadeiras, choros, contação e relato de histórias e até encaminhamentos, como por exemplo, para atendimento médico. “Considero a colcha uma intervenção artística urbana necessária, dando visibilidade a um indivíduo criativo, cheio de energia, que aprecia o universo estético e cultural para além das veredas das drogas, do crime e do sofrimento”, reflete. Marina trata a colcha como uma intervenção urbana, onde o que era construído ficava pregado em alguma parede ou pendurado como um móbile, ou em uma árvore de praça. “Quando iam para a rua e não encontravam os meninos, deixavam recado para eles. Os motoristas que por ali passavam observavam as cenas. Eles mexiam com aquele espaço”, ressalta.

A aproximação entre educadores e meninos de rua era permeada por essas atividades artísticas e lúdicas, dando suporte emocional e educativo para os participantes almejarem outras coisas em sua vida. “Quem mais quer tirá-los da rua servindo como suporte para eles se enxergarem como indivíduos, sujeitos autônomos para sair do estigma de que meninos em situação de rua são iguais a droga, furtos, malandro, trombadinha?”, indaga Marina. Ela atenta para o fato de que o intuito do trabalho não era transformar meninos e educadores em artistas profissionais, mas usar o que a arte desperta de emoção, sentimento, criatividade para sonhar com outra condição. Marina lembra que em Campinas os educadores tinham o MIS como parceiro, garantindo espaço para expor os trabalhos produzidos pelos adolescentes, dando visibilidade aos trabalhos.

Vínculos

Marina revela que todos os meninos participantes do projeto tinham família, mas o vínculo familiar era fragilizado por situações de violência, condições precárias, falta de dinheiro, de moradia fixa, grande número de filhos. “Em nenhum momento, tomávamos a família como culpada pelo fato de o menino estar na rua, mas aconteciam várias violações de direito que levavam os meninos às ruas. Então, tentávamos restabelecer o vínculo”, afirma Marina.

O trabalho como educador social torna-se ainda mais gratificante quando alguns adolescentes conseguem mudar sua história de vida a partir das atividades oferecidas, como é o caso de um jovem poeta que, fascinado pela escrita, compôs um livreto com mais de 60 poemas e continuou a escrever poesia. Tempo depois, um de seus poemas foi encontrado em uma revista eletrônica.

De acordo com Marina, os educadores assumem um grande compromisso com esse trabalho, sem medir o grande esforço exigido para isso, além da necessidade de muito estudo. “Uma coisa muito interessante que tirei como resultado das entrevistas dos educadores foi a importância das diversidades das formações. A maioria tinha nível superior, entre eles havia filósofo, designer, cientista social, física, educadora física, artista plástico, pedagogo. E cada um traz contribuição no trabalho com eles, todos puxando para o viés artístico”, revela a pesquisadora. Muitos que não tinham essa facilidade encontravam sua importância na conversa com os meninos, em dupla com outro educador, para trabalhar outras questões.

A pesquisa de mestrado torna mais clara a melhor forma de utilizar a relação educação-arte com meninos de rua na prática, a partir da entrevista com dez educadores. Ela reforça que muito já se publicou em termos de abordagem teórica da arte, da educação, da importância da pedagogia. “Mas eu quis mostrar como isso era feito”, diz Marina. Em Campinas, segundo a pesquisadora, existe uma Associação de Educadores Sociais, e, como a profissão não é regulamentada, a associação é um espaço importante para lutarem por seus direitos, porém a situação é delicada, segundo Marina, já que muitos empregadores atribuem atividades múltiplas aos educadores sociais. Cada instituição, segundo a pesquisadora, decide o que vai fazer.

Poder mostrar como essas relações acontecem a partir de experiência prática é uma questão de honra para quem tem o desejo muito grande de mudar alguma coisa num Brasil tão desigual. “Considero ainda que a colcha e a arte não salvarão nenhum menino de rua de sua situação social e econômica, mas essas ferramentas de trabalho lançam reflexão suficiente para que pensem sobre sua vida e possam fazer escolhas”, conclui.

Publicação
Dissertação: “A educação e a arte nos entrelugares da rua – uma história de educadores e meninos de rua”
Autora: Marina Moreto
Orientador: Rogério Adolfo de Moura
Unidade: Faculdade de Educação (FE) da UNICAMP

1 comentário

  1. Marina Moreto em 13/09/2012 às 19:56

    A quem interessar saber mais sobre a pesquisa desenvolvida e o contexto socioespacial e político da situação de rua e do município de Campinas, podem acessar a dissertação na íntegra pelo site: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/
    Boa leitura!

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