Pelé: “Meninos, eu vi!”

Pelé jovemViver foi e continua sendo-me um privilégio. Não me canso de revelá-lo, num desejo imenso de apenas render graças. A mim mesmo, parece-me assustador ter visto e ouvido tantas coisas, participando, também, de muito das muitas delas.   O recordar-me de  tudo leva-me a refletir como isso foi e tem sido possível, em meio a conflitos e paradoxos intensos, de alegrias e de tristezas, de venturas e decepções.

Às vezes, duvido. Foram sonhos, pesadelos, realidade? Por saber que aconteceram, repito, a mim próprio, o canto do I Juca Pirama, do admirável mas esquecido Gonçalves Dias:

E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
Do que ele contava,
Dizia prudente: – “Meninos, eu vi!”

Acompanhando, à distância, a enfermidade de Pelé é nele que penso. E a memória do coração leva-me aos 14, 15 anos de idade, meus e dele. Duas quase crianças. Ele nunca soube e ainda não sabe que eu existo. Mas os meus olhos deslumbrados viram-no pela primeira vez. Foi em Bauru, onde eu passava todas as minhas férias infanto-juvenis, na pequenina casa de meu tio, humilde ferroviário da Noroeste. Dias inesquecíveis, apesar da nossa quase pungente pobreza. Aqueles dias, trago-os comigo em minhas lembranças: Rua dos Ferroviários, Casa Número 10.

Meus primos e amigos – naquela colônia de empregados da ferrovia – tratavam-me com carinho especial, como se fosse, eu, diferente deles. Animavam-se por  dois motivos: eu era de Piracicaba e eles amavam o Nhô Quim. Jogávamos futebol ao lado dos trilhos, fazíamos serestas e, às escondidas, íamos espiar a zona do meretrício, lá pertinho, na Rua Costa Ribeiro. Para ter coragem de flertar – era esse o verbo, anterior ao paquerar – com as meninas, tomávamos rabo-de-galo – nosso “cocktail brasileiro” – mistura de cachaça com vermute.

Naquele ano – 1954 ou 1955 – encontrei parentes e amigos excitados. Um deles, Antônio Carlos – que se tornaria excelente jornalista esportivo em Bauru – era o mais animado. E insistia para que, no domingo a chegar, eu o acompanhasse ao pequeno estádio do BAC (Bauru Atlético Clube) onde o “Baquinho”, time infanto-juvenil, iria jogar. Empolgado, ele falava de “um pretinho” que fazia, com a bola,  coisas do arco-da-velha. Era um tal de Gasolina, que alguns também chamavam de Pelé, um garoto como nós.

Cá em Piracicaba, eu tinha dois amigos – muito queridos ainda hoje – que jogavam no juvenil do XV, os atuais doutores de Odontologia, Fernando Pacheco e Mathias Vitti. Eles eram craques e eu, perna-de-pau, jogava com eles no time do Dom Bosco. No gol, Mathias era uma barreira. E Pacheco, um endiabrado atacante, quase impossível de ser marcado. Era tal o seu talento que ganhou um apelido: Mandinga.

Indo ao estádio do BAC, era em Mathias e no Fernando que eu pensava, pouco me importando com o tal “pretinho” de nome Gasolina ou Pelé. Não haveria garoto que jogasse mais do que o Fernando Pacheco, ora bolas! Então, o Antônio Carlos me apontou o “pretinho”: “Não tire os olhos dele, aquele é o Pelé.” O menino, antes do jogo, tratava a bola como se fosse parte do seu corpo. E a torcida, extasiada, aplaudia. Ao começar o jogo, o “pretinho” – que parecia ter chuteiras maiores do que os pés – levava a torcida ao delírio. E eu me espantei, não acreditando no que via. Gasolina ou Pelé era mais endiabrado do que o meu amigo Mandinga. Fiquei fascinado.

Ao retornar a Piracicaba, como que hipnotizado pelas diabruras do “pretinho”, falei aos meus dois amigos futebolistas que o XV precisava dar um jeito de trazer o Gasolina ou Pelé para o juvenil do Nhô Quim. Ninguém deu importância e eu me esqueci, embora a mágica do menino voltasse-me, quase sempre, à lembrança.

Dois ou três anos depois, lendo o “Mundo Esportivo” – famoso semanário paulistano da época – deparei com uma declaração do presidente do Santos, Modesto Roma. Falava-se que o maior jogador de futebol do mundo era o húngaro Puskas. E Modesto Roma contestava: “O maior jogador do mundo está no juvenil do Santos. O nome dele é Pelé.” Era ele, o “pretinho” de Bauru, o Gasolina que me deslumbrara.

Em 1958, o mundo conheceu Pelé. E  transformou-o em Sua Majestade, o Rei Pelé. E eu me recusei a ser seu súdito, vaidoso por tê-lo visto jogar, pela primeira vez, no campinho do BAC. Eu me sentia “amigo de Pelé”, velho conhecido. Sem nunca imaginar, porém, que haveria de detestá-lo de tanto que ele judiou do Corinthians.

Hoje, peço a Deus por ele. É o Rei. O Deus Negro do futebol. E me envaideço: “Meninos, eu vi!” Eu vi Pelé quando era, também, Gasolina.  Bom dia.

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