E a “marvada pinga” ficou chique

CachaçaSei estar próximo do fim da jornada, e, todos os dias, dou graças pelas maravilhas que conheci na aventura humana. E que ainda conheço, no momento de fazer balanços e de reflexões mais profundas. O saldo é generoso demais: vivi infinitamente mais alegrias do que tristezas. Foi-me dada, penso eu, a bênção de olhar, ver, enxergar, ouvir o mundo e a vida com olhos e ouvidos bem abertos.

Tristezas e decepções, no entanto, eu as levo comigo. Fazem parte da aventura e – se vistas e tidas sem ressentimentos – enriquecem ainda mais a vida. Uma dessas tristezas eu a tenho ainda hoje: parte das chamadas elites piracicabanas – por preconceito, ignorância ou propositalmente – sempre tentou empobrecer as riquezas culturais desta terra sempre privilegiada. Ora, que povo e que município tiveram tão fortemente uma identidade singular como a piracicabana? E símbolos tão claros e evidentes dela?

Fomos a “terra do peixe”, que está em nosso nome. E, por pequenez política, permitimos que o nosso rio sagrado fosse profanado. O peixe sumiu, mas teima em retornar. E fomos a “terra da boa pinga” – o que envergonhava aquela falsa elite, que se envergonhava, também, da nossa singularidade do falar, própria do Vale do Tietê Médio, resquício do “nhengatu” paulista. O preconceito foi tanto que senhoras da elite, temendo ser vistas como caipiras, trocaram a pronúncia do garfo. Para não confundir com “sarto, arto”, o garfo, para essa elite, virou “galfo”. Para se ver…

A cachaça e o peixe piracicabanos eram presentes sofisticados para moradores de outras cidades, incluindo suas elites. Quando, por exemplo, se chegava a São Paulo, a visita ou a negócios, já nos perguntavam: “E você não trouxe peixe? E a pinga, cadê?” Criou-se, então, um verdadeiro ritual para agradar as pessoas: levar um garrafão de pinga e um jaú ou um dourado, dentro de um bloco enorme de gelo. Um dos comerciantes que “congelava peixes para presente” era o adorável Jorge Maluf, com sua casa comercial na rua São José, em frente ao Cine Broadway. Levava-se o peixe e ele – pai da Talginha e da Ivone Maluf – o colocava no congelador, envolvido em serragem. E lá estava preparado o presente para os deuses. E os garrafões de pinga vinham dos alambiques da cidade, ou da Cavalinho e Tatuzinho, “ai Tatu, Tatuzinho, me abra a garrafa e me dá um pouquinho.”

Aquela falsa elite – que ainda persiste, apenas renovada – envergonhava-se de nossas riquezas culturais, incluindo o cururu, a catira, a umbigada. Eles tinham medo de ser caipiras, mesmo que o verdadeiro aperitivo nacional se chamasse “caipirinha”. E não perceberam que Thales de Andrade – o grande intelectual e educador, que se tornou Secretário da Educação – consagrava essa identidade criando o neologismo “caipiracicabano”. João Chiarini o propagou. E eu continuo insistindo nele: “caipiracicabano, graças a Deus”!

A cachaça foi transformada, oficialmente, em bebida brasileira. A “caipirinha”, a pouco e pouco, se tornou mel dos deuses para o estrangeiro. Nos Estados Unidos, a “marvada pinga” – aquela que Inezita Barroso transformou em hino da nacionalidade, “que me atrapaia” – tornou-se “Brazilian rum”. Chique, não? Só que, agora, passou a ser chamada pelo seu verdadeiro nome: cachaça. Sem precisar de mais nada para identificá-la. E como ficam os envergonhados e tolos piracicabanos que se envergonhavam da “marvada pinga”, enquanto nós éramos a terra da melhor cachaça, da melhor pinga?

É uma das tristezas que ainda carrego. Há núcleos piracicabanos que preferem imitar ou reproduzir salões paulistanos ou cariocas, desprezando e ignorando os nossos tesouros culturais. A cachaça era parte dessa identidade. Mas foi enxotada pelos falsos e hipócritas imitadores de outras culturas. Agora, a “marvada pinga” se tornou chique, está de salto alto, freqüenta os melhores salões do mundo, vai-se tornando coqueluche mundial, já prepara para competir com a vodca, o rum, o uísque. E Piracicaba – que foi um dos berços dela em terras paulistas – não tem mais nada a ver com isso, ausente dessa consagração mundial. Não é triste? E o pior: mais tristezas estão acontecendo e – se não houver resistência – tantas outras acontecerão. Tristeza. Bom dia.

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