O sonho de Manoel Gomes Tróia (9)

Primeiros tempos

Até às vésperas de falecer, Sebastião Santos de Oliveira, Sebastião “Gessy” – que Piracicaba homenageou dando seu nome a uma rua no bairro Dois Córregos – haveria de lembrar-se e de comentar como fora o primeiro contrato da UNIMED com a Cipatel. Chico Toledo ouviu os comentários várias vezes e a história passou a fazer parte do folclore da UNIMED-Piracicaba. Na realidade, o presidente da Cipatel, Felisberto Pinto Monteiro, ainda que respeitando o idealismo e a luta de Manoel Gomes Tróia, nem sequer sabia como a cooperativa haveria de funcionar. Rotariano de destaque e companheiro de Sebastião, foi a amizade entre os dois e o companheirismo rotário que levou Felisberto a acreditar e a ceder: – “Olha aqui, Sebastião. Eu não sei se isso vai dar certo ou não, mas estou acreditando em você. Vamos ver no que vai dar.”1

O próprio Manoel Gomes Tróia, passados 33 anos daqueles acontecimentos, reconhece a importância por assim dizer vital de Sebastião Santos de Oliveira na história da UNIMED. Foi o homem providencial, que surgiu no momento certo e no lugar certo. Ao mesmo tempo em que Tróia fazia palestras e como que doutrinava as pessoas e entidades a respeito da nova cooperativa, Sebastião “Gessy”, (Na foto de 1983: Tróia assinando contrato e, em pé, atrás: Sebastião Gessy, Alcides Aldrovandi e José Olivetti.) com suas relações privilegiadas na sociedade piracicabana, abria portas, fechava contratos.

– “A UNIMED existe, em Piracicaba, pelo pioneirismo e liderança de Manoel Gomes Tróia e pela competência de Sebastião Santos de Oliveira como vendedor.” – não hesita Francisco de Toledo em afirmar.2

Ainda que começando a caminhar, as coisas, na UNIMED, não corriam como Manoel Gomes Tróia desejava e previra. A inexperiência de quase todos não dava ritmo aos trabalhos. Como gerente técnico-admistrativo, Tróia indicara um dos seus mais leais companheiros, o único dentista que assinara a ata da fundação da cooperativa: Enéas Lemaire de Moraes. No livro de registros da UNIMED, é ele o primeiro funcionário registrado, com a data de 1º de abril de 1971. Na mesma data, foram registrados Antonio de Pádua Gevartoscki, como contador; Zuleica Leal Perez e Sônia de Fátima Pagotto, auxiliares de escritório; e Rosy Ribeiro Naldi, para serviços gerais. Rosy viria a se aposentar como funcionária da UNIMED. Homem reconhecidamente correto, de atitudes impecáveis, mas controvertido, o dr. Enéas era detalhista, beirando ao perfeccionismo. Seu temperamento fechado acabou criando dificuldades e, rapidamente, Tróia se deu conta de que não fôra a escolha certa. Faltava praticidade, o ritmo tinha que ser outro.

– “As coisas não andavam, o Enéas não tinha vocação para aquele cargo, ainda que homem correto e sério.” – lembra-se Tróia, revelando a faceta dura, firme de sua personalidade. Não interessava fossem amigos, o objetivo maior era a própria UNIMED. Enéas saiu e, no dia 1º de março de 1972, era contratado, para a gerência, Américo Migliolo. Que, também, não ficaria muito tempo no cargo.

Com Sebastião Oliveira, estava outro rotariano, participando ativamente nas vendas: José Olivetti. A dupla não dava paz às empresas. Se a Cipatel começara com cerca de 200 funcionários, os contratos com sindicatos fortaleciam as expectativas da cooperativa: eram cerca de quatro mil usuários. Com o Sindicato dos Bancários, da qual Francisco Toledo era presidente, o contrato foi assinado Caterpillar: iniciando uma nova fase no crescimento industrial piracicabano na década de 70, contratou os serviços da UNIMED para seus mil funcionários, em 5 de abril de 1972.

As empresas manifestavam confiança, aderiam. Entre os primeiros contratos, estavam a Casa Periañes – de primos de Tróia – Irmãos Fazanaro, Marrucci, Sima-Transhid. A Caterpillar, que chegaria com a criação do Distrito Industrial, faria, já em 1974, um contrato de pré-pagamento para os seus cerca de mil funcionários.

No final da década de 1970 – mais precisamente, no dia 25 de junho de 1979 – deu-se, verdadeiramente, a consolidação da UNIMED-Piracicaba, com a adesão do Grupo Dedini e seus mais de 4.500 funcionários. Era o contrato de nº º47, com 13 cláusulas e muitos parágrafos, em que se padronizava um atendimento revolucionário para a época. Eram usuários “todos os funcionários e os dependentes desses funcionários” da Dedini Serviço Social, tendo direito, desde a data em que fossem contratados, a receber gratuitamente os serviços da UNIMED: “atendimento clínico em geral, em consultório, em horário comercial; atendimento no Serviço de Orientação Médica e Social, mantido pela UNIMED; atendimentos clínicos especiais, com especialistas credenciados ou cooperados da UNIMED, mediante indicação de seu corpo clínico (cardiologia, endocrinologia, gastroenterologia, pediatria, dermatologia, angiologia, hematologia, etc.); atendimento cirúrgico em geral e especializado (cirurgia geral, ginecologia, proctologia, urologia, etc.); serviços complementares de diagnóstico, quando solicitados pelos médicos da UNIMED ou da contratante (eletrocardiograma, eletroencefalograma, radiologia, laboratório clínico, etc.).”3 Consolidavam-se os primeiros passos.

Mas, em 1972, as dificuldades ainda eram grandes. Num dia de abril daquele ano, Tróia passava pela rua Governador – “era uma manhã chuvosa, eu parei na esquina da Relojoaria Gatti” – quando, incidentalmente, se encontrou com Chico Toledo, líder dos bancários.

– “E a UNIMED, como vai?” – perguntou Chico. Tróia falou de conquistas e de dificuldades, de preocupações e, então, como que brincando, Chico respondeu:

– “Se você me contratar, eu ponho aquilo em ordem no prazo de três meses.” Foi contratado. E – com exceção de breve período de um ano, quando atendeu a cooperativa médica de Santos – continuou na UNIMED até hoje.(Livro escrito em 2002)

A UNIMED caminhava. Os médicos recebiam pontualmente, ao final do mês, quando se fechavam os balanços das consultas e de pagamentos. Os usuários, satisfeitos com a seriedade e eficácia dos serviços, entusiasmavam- se. A UNIMED não descuidara nem mesmo de casos mais difíceis, que não contassem com recursos em Piracicaba: a pedido do médico do paciente, aprovavam-se exames e providências fora do âmbito da UNIMED de Piracicaba.

Mas a obsessão de Manoel Gomes Tróia pela atividade médica prosseguia com a mesma intensidade, sem esmorecimento. A sua fama de arrogante e de arbitrário ia-se fortalecendo, também e com certeza, pela verdadeira cruzada que mantinha em defesa da responsabilidade social dos médicos.

Chico Toledo falaria sobre essa insistência de Tróia quanto à conscientização dos cooperados:

– “Ele acredita que o médico é um tanto imediatista, comentando que o profissional está ligado à cooperativa mais para encontrar um lugar de trabalho do que pela filosofia.”

E acrescentava:

– “Por isso, ele (Tróia) avisa que não vai dar tréguas ao trabalho de conscientização, desta vez não mais junto à população, mas, sim, com os próprios cooperados.”4

Em 1972, Manoel Gomes Tróia era um homem de 41 anos, no auge da vitalidade, alimentado por grandes planos e esperanças. A diretoria da UNIMED fora toda alterada na chapa apresentada à assembléia geral de 27 de fevereiro de 1972, mantendo-se, da primeira diretoria, apenas ele na presidência. 5 Impunha-se, ainda outra vez, a liderança de Tróia, que se cercara de amigos próximos e de médicos mais antigos, a cujos conselhos iria, muitas vezes, recorrer. Entre eles, de maneira especial, João José Correa, Alcides Aldrovandi, André Dias de Aguiar, Benito Filippini. Na verdade, eram tempos difíceis. Pois, se a UNIMED se consolidara, Piracicaba assistia a mudanças radicais, a transformações políticas que deixariam marcas para as próximas décadas. De repente, aos 41 anos de idade, Manoel Gomes Tróia era, em Piracicaba, uma das lideranças sociais mais fortes, preenchendo vazios que se abriram com perdas políticas, mortes, cassações.

Naquele ano de 1972, elegia-se prefeito de Piracicaba um jovem engenheiro com menos de 30 anos, Adilson Benedicto Maluf. Com muita vontade, idealismo, mas ainda despreparado, inexperiente, sem equipe de governo, Adilson Maluf passaria a governar uma cidade politicamente confusa, dividida, com paixões partidárias e ideológicas ainda acesas. Eram tempos do “milagre brasileiro” do Presidente Médici e, também, das torturas, das violências, de silêncios profundos.

Toda uma geração de políticos experientes, de lideranças fortes – e daqueles que se preparavam para sucedê-los – começou a desaparecer. Após a morte de Luciano Guidotti, sucedera a cassação dos direitos políticos de Salgot Castillon; em seguida, a morte de seu vice-prefeito, que assumira o cargo, Cássio Paschoal Padovani. O líder canavieiro, Domingos José Aldrovandi – responsável pela criação do Hospital dos Plantadores de Cana – era derrotado nas urnas, afastava-se da política. E, em anos seguintes muito próximos – entre 1974 e 1975 – morriam outros líderes de grande expressão: Humberto D’Abronzo, os vereadores Jorge Antônio Angeli e Guerino Trevizan, e o herdeiro do “guidotismo”, João Guidotti.

Os médicos da diretoria da UNIMED – incluindo Manoel Gomes Tróia – viram acontecer o vazio de lideranças, que atingira também a Santa Casa de Misericórdia, renovada em sua Provedoria e em grande parte de seu corpo clínico. Eram lideranças jovens surgindo, sem transição, quase que abruptamente. E uma nova instituição, com projetos ambiciosos na área de

educação, surgia: a Universidade Metodista de Piracicaba.

Em 1972, elegia-se Adilson Maluf, retomava-se a idéia da criação de um Distrito Industrial, tudo se atropelava como se o desenvolvimento pudesse ser feito a qualquer preço. Empresas como Phillips, Caterpillar, White Martins chegariam a Piracicaba. E, do impacto dessas transformações, ia-se gerando uma nova cidade. Sem os antigos líderes. Os próprios médicos não perceberam. Mas a liderança de Piracicaba passava por eles, os que tinham mais trânsito na sociedade, nas instituições. E Manoel Gomes Tróia jogou todo o peso de sua liderança e de sua influência para levar a UNIMED a novos patamares. Na realidade, atropelou o que lhe parecia empecilho para essa realização, com o coração na ética e na responsabilidade médicas, com a razão na produtividade e na eficiência.

Um autoritário? Também Francisco de Toledo, que não esconde a admiração e o respeito por Tróia, tem essa opinião:

– “Ele era autoritário naquilo que conhecia. Mas, na administração, delegava e exigia responsabilidade.”6 Toledo sabia das dificuldades de relacionamento entre médicos, pessoas treinadas para decisões solitárias, individuais. Sua análise – após três décadas de

convivência diária com a classe médica – é serena mas firme:

– “Faz parte da própria formação dos médicos: o individualismo nas decisões, o imediatismo delas, pois quase sempre lutam pela vida e contra o tempo e, em certos momentos, há o risco de julgarem-se como Deus.”7

Outros objetivos inquietavam a imaginação de Tróia: a sede própria e um hospital para a UNIMED.

 

1 Entrevista de Francisco de Toledo ao autor, 29/08/2002.

2 Idem.

3 Documento dos arquivos pessoais de Manoel Gomes Tróia.

4 Entrevista de Francisco Toledo a Assistência Médica, publicação mensal da UNIMED do Estado de São Paulo. Ano 1, nº 2, fev/1986.

5 A diretoria da UNIMED em 1972/74 estava assim composta: presidente, Manoel Gomes Tróia; vice-presidente, Alcides Aldrovandi. 1º secretário, André Dias de Aguiar Júnior; 2º secretário, Walter Calil Chain. Tesoureiro, João José Correa. Conselho Fiscal (para 1972/73): efetivos, Benito Filippini, Jacob Bergamin Filho, José Nilton de Oliveira; suplentes, Nilson Machado, Ludmar Navajas Machado, Caio Ferreira Carneiro. conselho técnico, Arthur Campanhã Affonso, Raimundo Sant’Anna.

6 Entrevista de Francisco Toledo em 29/08/2002, ao autor.

7 Idem.

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