O sonho de Manoel Gomes Tróia (15)

Assembléia: sem destituição

O médico Moracy de Souza Arruda – que não estivera entre os principais líderes da oposição a Manoel Gomes Tróia – acabou sendo o candidato a uma possível sucessão, após a conflituosa assembléia do dia 8 de outubro de 1986, no Instituto Cultural Italo-Brasileiro.

A assembléia reuniu quase que exclusivamente médicos que faziam oposição à diretoria presidida por Manoel Gomes Tróia. O médico Renato Françoso Filho – um dos responsáveis pelos entendimentos entre UNIMED e a Clínica Santa Mônica – participou da assembléia e deixou um documento entregue à Cooperativa. Datado de 15 de outubro, Renato Françoso relata ter estado presente para “defender os convênios assumidos pela Diretoria atual da UNIMED”, lamentando-se, porém, de que a “esperança de (…) poder esclarecer as dúvidas dos colegas (…) ruiu incondicionalmente” quando, segundo ele, a votação foi aberta para a imediata destituição da diretoria, “sem discussão de um assunto tão importante”. 1 Conforme a carta, acompanharam-no, com o mesmo objetivo, os médicos Antônio Geraldo Buck, Araryr Olair Ferrari, Tufi Chalita, Vladir Cesar Braidotti, Lúcio Ferraz de Arruda Júnior.

Na realidade, não havia mais nada a discutir, a decisão estava tomada. Pela destituição, votaram 108 médicos, tendo sido eleito como coordenador do Conselho Provisório o médico Moracy Arruda.

– “A decisão era de tal forma maciça que até os médicos que defendiam a transação com a Clínica acabaram votando pela destituição da diretoria”, lembra- se Jacob Bergamin Filho.2

 

Posse impedida

Mas Manoel Gomes Tróia, alegando a ilegalidade da assembléia e o fato de tramitar na justiça uma ação de nulidade daqueles atos, negou a posse ao Conselho Provisório. No dia 11 de outubro, liderados por Moracy Arruda, os médicos tentaram assumir os cargos, indo à sede da entidade, na rua 15 de novembro. Foram, porém, impedidos de entrar por policiais que, à porta da sede da Cooperativa, diziam estar no local “para proteger a segurança das funcionárias.”3

De imediato, foram ao plantão policial, registrando um boletim de ocorrência, no qual os médicos afirmaram ser “componentes do conselho administrativo da UNIMED, eleitos provisoriamente em 08.10.86 e que haviam ido tomar posse da entidade naquele dia (sábado, dia 11), sendo impedidos pelo indiciado (Manoel Gomes Tróia.”4 A notícia segue: “Segundo o documento, Tróia não teria entregue a entidade, alegando a tramitação judicial do caso” e que, diante de um pedido por escrito, simplesmente assinara, em papel timbrado da entidade: “não dei posse”. Moracy de Souza (foto) declarou ao mesmo jornal que eles, “apesar de ter tudo a favor”, esperariam a decisão judicial.

Foi, como ambas as partes em conflito afirmavam, “uma guerra”. Anteriormente, contra os médicos que lhe faziam oposição, Tróia houvera feito queixa, à Delegacia de Polícia local, da qual abrira-se “inquérito policial (nº 26/86), para apurar a existência do crime de falsidade ideológica”, pois a diretoria da Cooperativa alegava ter sido usada “indevidamente a assinatura de alguns sócios.”5

A assembléia não destituíra, oficialmente, a diretoria presidida por Manoel Gomes Tróia. Os sindicatos, sempre aliados de Tróia, reuniam-se, através do Conselho de Entidades Sindicais de Piracicaba, para prestar-lhe apoio, manifestando- se: “não podiam interferir nos problemas internos da entidade, não admitindo, porém, a tomada do poder pela força, como médicos tentaram fazer sábado de manhã”, afirmando, também, não aceitarem “alterações nos contratos dos convênios com os trabalhadores”.

O médico Jacob Bergamin Filho, fazendo coro a companheiros daqueles enfrentamentos, também insiste no que parecia, à oposição, a ação indevida dos sindicatos na Cooperativa:

– “No dia da assembléia, havia folhetos de sindicatos com os dizeres ‘A UNIMED é nossa!’, como forma de pressão”, diz.6

Também o médico José Mário Angeli se recorda daquela noite, quando, segundo ele, sindicalistas tentaram impedi-lo, de maneira agressiva, a ingressar no recinto da assembléia.7

Na realidade, não houve vencedores. O próprio Alcione Moya Aprilante, um dos líderes do movimento oposicionista, haveria de declarar:

– “Ganhamos mas não levamos.”8

E a assembléia, mesmo nada resolvendo, fora o golpe mortal. A cisão tornara-se irremediável e colocava-se em jogo até mesmo o futuro da própria UNIMED Piracicaba. Uma sucessão de ações judiciais, de ambas as partes, tumultuava a classe médica piracicabana. Enquanto se esperava por decisões do Judiciário, havia receios, cansaços e preocupações. A calmaria que se seguiu foi aparente, apenas um hiato. Mas permitiu que houvesse intermediações, conversas, tentativas de acordos.

Alguns meses depois, já em 1987, encerrar-se-ia o tempo de Manoel Gomes Tróia, o homem que fundara, criara e, por 16 anos, dirigira com mão de ferro a UNIMED-Piracicaba. O Hospital UNIMED seria a sua última grande realização.Muitos anos depois, Manoel Gomes Tróia deixaria como que rabiscadas, palavras que podem ser lidas como um testemunho: “durante todos os anos em que estive à frente de Entidades Médicas, jamais amei a obscuridade, nem disfarcei a verdade e tampouco dei guarida ao temor. erros que eventualmente cometi foram antes desvios da mente e não propriamente do coração.”9

Acordos inúteis

Houve quem tivesse acreditado, após aqueles acontecimentos, em superação de divergências. Eram, no entanto, simples aparências. Até os acordos que se fizeram, na tentativa de harmonizar as partes conflitantes, mostraram-se insuficientes. Manoel Gomes Tróia, com as seguidas demissões em sua diretoria, aceitou novas composições, preenchendo vagas com médicos que lhe faziam oposição. Três deles passaram a ser diretores, tendo ainda Tróia na presidência: Moracy Arruda, Alcione Aprilante e Ludmar Navajas Machado. O acordo merecera citação especial até mesmo em reunião da diretoria da APM, da qual Aprilante era presidente.10 Mas apenas mascarara a crise.

Tróia passou, com mais afinco, a dedicar-se às reformas e melhoramentos do hospital, ainda que percebendo as dificuldades que tinham aumentado, sua solidão cada vez maior na diretoria:

– “A oposição continuava e eu percebi que começava a refletir também no hospital. Acreditei que o clima se alterasse, mas piorou. Não havia apoio ao hospital por parte daqueles que desejavam o meu afastamento.”11

Quando, em 1985, a UNIMED-Piracicaba completou 15 anos, a sua maturidade era reconhecida pela própria Federação das UNIMEDs que a chamava de “cooperativa singular”, responsável pelo êxito de “atender a 130 mil usuários em uma população de 300 mil habitantes”, acrescentando: “a relação conveniados/habitantes permite dizer que a UNIMED de Piracicaba é a recordista do País.”12

No dia 11 de abril de 1987, foi inaugurado, finalmente, aquele que se transformara no motivo final da reação contra Manoel Gomes Tróia: o Hospital UNIMED. Desde o dia 17 de janeiro daquele ano, o hospital já vinha funcionando, atendendo usuários da cooperativa e pacientes particulares.

Enfim, o hospital

“Tróia é um homem que teve a capacidade de enxergar o óbvio. Um homem do tipo que o Brasil precisa hoje. Este passo de Piracicaba será seguido. Está sendo seguido”, foram as palavras de Edmundo Castilho, presidente da UNIMED do Brasil. E foi o mesmo Castilho quem, a pedido do vice-presidente Alcides Aldrovandi(foto), entregou a Manoel Gomes Tróia a placa de prata onde estavam gravados os seguintes dizeres: “Ao dr. Manoel Gomes Tróia, pelo seu trabalho e idealismo dedicados ao cooperativismo médico. Piracicaba, 11 deabril de 1987.”13 Era festa, mas já soava como requiém.

A inauguração do hospital alcançou repercussão não apenas nos meios médicos, mas também nos sociais e políticos. Naqueles dias, a crise brasileira alcançava o limite do insuportável. De maio do ano anterior a janeiro de 1987, tinham sido dispensados 4,5 milhões de trabalhadores brasileiros. Daqueles, 11,4% – ou 520 mil pessoas – haviam requerido seguro-desemprego, mas apenas 225 mil foram considerados habilitados como segurados. Previa-se uma inflação de 10 a 12% ao mês. Eram essas as informações do Ministério do Trabalho que Edmundo Castilho comentava criticamente na inauguração do Hospital UNIMED-Piracicaba14, o que realçava a importância do acontecimento.

Eram 40 leitos iniciais entregues à população, prevendo-se mais duas etapas de ampliação: de 80 e de 120 leitos. No dia da inauguração, o Hospital UNIMED contava com um quadro clínico de 286 médicos. A sua proposta: “assistência médica humana e personalizada”. E uma das suas prioridades era o setor de pediatria – que causara preocupações e reações nos consultórios particulares – que iria, nos dias úteis, funcionar em dois períodos, tanto no hospital como nos consultórios de médicos conveniados, havendo plantão de 24 horas no hospital. Esse pronto-atendimento permanente estender-se-ia, também, à clínica médica, ortopedia e traumatologia.

O pânico em relação ao vírus HIV espalhara-se por todo o Brasil, a AIDS surgindo como a nova peste negra. O atendimento da UNIMED-Piracicabagarantia, na abertura oficial, o seu foco principal de atenção: a desinfecção hospitalar. E, para isso, criara uma Comissão de Desinfecção Hospitalar, formada por um anato-patologista, um clínico geral e uma enfermeira alto padrão. Tróia, mesmo na inauguração do Hospital e quando se falava em pacificação, insistiu, em seu discurso, em rebater os que o haviam criticado pela aquisição do hospital.

– “Essas críticas partiram de pessoas com interesses em outros hospitais da cidade.”

Havia tensão no ar. E, apesar de ser uma celebração, o diretor-clínico do hospital, Renato Françoso Filho, não cortou qualquer fita: apenas abriu a porta e convidou as pessoas a conhecer as instalações.

Acordo e renúncia

O que poucos sabiam, no entanto, é que Manoel Gomes Tróia já aceitara afastar-se da Presidência. Sua última grande meta era a de reformar e entregar o hospital e, naquele dia 11 de abril de 1987, acabara de fazê-lo. Um almoço no Restaurante Mirante, do qual participaram autoridades e convidados, foi um ato simbólico de despedida. Tróia passaria o cargo ao vice-presidente Alcides Aldrovandi, num acordo firmado com os três diretores da oposição – Alcione Aprilante, Moracy Arruda e Ludmar Navajas Machado – na sede da Federação da UNIMEDs, em São Paulo.

Alcione Moya Aprilante confirma o acordo e os termos dele: Manoel Gomes Tróia renunciaria em favor de Alcides Aldrovandi, que assumiria a presidência até o término do mandato da diretoria. Tróia teria direito de assistir às reuniões do Conselho e de voto.15 Participaram da reunião também os médicos Alcides Aldrovandi e Renato Françoso Filho. Mas o acordo, na realidade, não foi cumprido, talvez até mesmo porque, na realidade, Tróia continuaria influindo junto à diretoria e inibindo Alcides Aldrovandi no exercício da presidência.

A despedida

O advogado Antônio Orlando Ometto lembra-se de ter sido um dos interlocutores entre as partes, pois a crise, em vez de amainar, acentuou-se. Alcides Aldrovandi, pouco tempo após o acordo, não admitia mais que seus termos prevalecessem.

– “Eu não sei o que houve, mas o dr. Alcides Aldrovandi não quis mais cumprir o acordo”, confirma Alcione Moya Aprilante.16

A velha e sólida amizade entre Tróia e Aldrovandi estava comprometida. A conversa passou a ser epistolar e foi o advogado Antônio Orlando Ometto um dos responsáveis pela interlocução entre os dois. Francisco Toledo é, também, parcimonioso em seus comentários:

– “Nunca soube o que houve entre eles. Sei, apenas, que houve muita mágoa dos dois lados.”17

Tróia, para quem o velho amigo Aldrovandi era o “Cidico”, sentiu-se traído; Alcides Aldrovani, querido e reconhecido por sua cordialidade e cavalheirismo, era pressionado pelos médicos da oposição que não aceitavam a influência de Tróia ainda sobre a diretoria. Chegou um momento em que Alcides Aldrovandi não suportou mais e falou para Tróia:

– “Está demais, você me atrapalha.”18

Revelando certa tristeza, Manoel Gomes Tróia relembra:

– “A partir daquele momento, saí em definitivo não querendo nunca mais voltar.”

Saiu e escolheu ficar por 10 anos no ostracismo, afastado da UNIMED que ele criara. Retornou apenas para receber a homenagem de seus pares, uma década após, na administração de Eudes de Freitas Aquino.

No dia 23 de julho de 1987, 276 cooperados coonestam, em assembléia geral, o mandato de Alcides Aldrovandi, como presidente, substituindo Manoel Gomes Tróia. Naquele dia, com Alcides Aldrovandi e, em seguida, com Moracy Arruda, começava a difícil transição da UNIMED-Piracicaba: dos tempos de Manoel Gomes Tróia para outros tempos.

Notas:

1 Correspondência de Renato Françoso Filho, enviada à diretoria da UNIMED. Cópia com o autor.

2 Entrevista de Jacob Bergamin Filho ao autor, 26/06/2003.

3 O Diário, 14/10/1986.

4 Idem.

5 Correspondência enviada pela UNIMED-Piracicaba, ao Senacoop-SP (Serviço Nacional de

Cooperativismo), em 7/10/1986, endereçada ao coordenador Alfredo H. de Oliveira Netto. Cópia em poder do autor.

6 Entrevista de Jacob Bergamin Filho ao autor, 26/06/2003.

7 Entrevista de José Mário Angeli ao autor, 28/06/2003.

8 Entrevista de Alcione Moya Aprilante ao autor, 24/06/2003.

9 Arquivos de Manoel Gomes Tróia. Palavras escritas no verso de um envelope de cartas, com carimbo dos Correios de 8/10/1999.

10 Ata de reunião da APM-Piracicaba, 28/10/1986.

11 Entrevista de Manoel Gomes Tróia ao autor, 30/6/2003.

12 Assistência Médica, nº 2, fev/1986.

13 O Diário e Jornal de Piracicaba, 12/04/1987; Assistência Médica, n° 10, maio/1987.

14 Jornal de Piracicaba, idem.

15 Entrevista de Alcione Moya Aprilante ao autor, 24/06/2003.

16 Idem

17 Entrevista de Francisco Toledo ao autor, 29/08/2003.

18 Entrevista de Manoel Gomes Tróia ao autor, 25/07/2002.

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