Outono e sonata pascal

picture (30)Pensei em inventar uma sonata de outono, um solo de clarineta, talvez um harpejo de alma, um suspiro, um acorde imaginário, um arabesco em dó maior.. Então, na tela do computador, apareceu a notícia: cientistas estão preparados para realizar a clonagem humana. Interrompi a sonata outonal, desisti de imaginar e sentir solos, arpejos, acordes. Vi, então, a pequenina abelha adejando sobre a flor de hibisco, lamentei-me de mim: que tenho, ainda, a fazer fora e além do meu jardim? Até quando haverá almas humanas?

Aquietei-me, porém. Vinha-me música das paredes. E, com ela, acho que vozes do além, que são eternas, as que permanecem após bocas e lábios terem-se fanado, inertes em silêncios e mudezes. E a que ouvi, num sussurro ao ouvido, foi de Fernando Pessoa. Ele não dizia do mar português, nem de um tempo ou de uma aventura. Na síntese de um religioso sem religião, de um profeta sem profecia, ele falava o que os homens, repetimos desde o exílio de Adão, quando escolhemos a razão para matar a alma:

“Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.”

Ao mar salgado de nossos tempos, podemos perguntar quanto desse sal comum não são lágrimas de cada um. E, por cruzarmos a fronteira da ciência, quantas mães choram, quantos filhos rezam, quantas noivas sem casar para tudo ser nosso, ó mar da loucura? Ora, é óbvio que nada disso vale, nada tem valido a pena, pois almas há que se vão tornando pequenas. E, no entanto, tudo, tudo vale a pena, se ela, a alma, não for pequena.

Sinto ser grande, a minha, essa que me foi emprestada. Descubro-o a cada dia. Rendi-me, cedi: a alma é maior do que a razão e a inteligência. Nada sei, mas sou capaz de sentir quase tudo. Consigo ser estrela, entender o que ela sente, pois estrelas sentem. E entendo e compreendo e sinto e sei o que há nas minhocas, na formiga, nas borboletas, nos candangos, nos gambás, nos passarinhos. São eles, mais do que os humanos, constituintes de meu universo. A ciência precede, antecede os cientistas. O sonho precede, antecede os sonhadores. A vida existe antes dos viventes. O destino humano – antes de ser maldição – é graça. Para o humano entender sua humanidade, a inteligência é que irá decidir, resolver, assumir, deslumbrando-se diante de si e consigo mesma. A razão é outra coisa. E é pobre.

Tenho pena e medo dessa loucura toda, de Frankenstein de novos laboratórios. Ovelha é ovelha, borboleta é borboleta, homem é homem, mulher é mulher, bicho é bicho, divino é divino, sagrado é sagrado, terreno é terreno, profano é profano. “Ó, mar salgado, quanto de seu sal, são lágrimas de Portugal?”

Rendo, então, graças ao descobrir não ser-me, a alma, pequena. É grande. Mas não é minha, nem minha é a vida. Elas são por si mesmas, são antes de mim. Quando religiões, profetas, livros santos e sagrados dizem de homens que “perdem a alma”, eles dizem de homens que não foram dignos de tê-las recebido. Ter alma não é fazer, agir a partir dela. É, apenas, permitir, deixar que ela exista ao se instalar num corpo humano. Abriguei minha alma. E meu corpo não a suporta. Ela é maior

A partir desta Páscoa, haverei de permitir aconteça esse solo, essa sonata, essa solitude, essa riqueza pacífica e serena de Outono. A alma se foi. E me chama. A viagem em direção ao infinito é mais fantástica do que atravessar o mar de Portugal. E vale a pena. Bom dia.

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