Homícidio de Deus

picture (32)Sextas Feiras Santas, também elas, já não são mais as mesmas. A sensação de o mundo parar aguardando o milagre da Vida Nova – aquela admirável dramaturgia religiosa tornou-se simples cena rápida, fugaz. O profano invadiu o sagrado. E, quando isso acontece, vulgariza-se até mesmo a pérola rara.

Em tempos de “fast-foods”, tudo está pronto, rápido, de consumo fácil. Não há necessidade de digerir. E, se não se digere, também não se metaboliza. Viver é, de certa forma, metabolizar sentimentos, sensações, descobertas, emoções, relâmpagos intuitivos da razão. Como “time is money”, não mais se aprecia o sabor das coisas, nem se faz a digestão. São alhos e bugalhos no mesmo prato; joio e trigo, no mesmo espaço; mentira e verdade, real e virtual, na mesma dimensão.

Se pessoas são descartáveis, sentimentos passam a ser apenas provisórios. Mas a vida e a história humanas são feitas de uma memória permanente, que se repete como numa recapitulação. A própria natureza recapitula-se. O Outono de agora não precisa perguntar ao Outono de ontem: “como é, mesmo, ser Outono?” De memória, o Outono se repete, com outras formas, outras belezas, outras vidas – mas Outono. Cada filho nosso é a repetição de nós mesmos, uma recapitulação da vida em outro. A vida sabe as coisas de cor. E “saber de cor” é saber com o coração.

Somos, hoje, o passado. Li, há tempos, um resumo de angústias humanas: “o futuro perfeito é o passado.” O meu futuro chegou comigo agora, realizou-se em mim. Logo, ele estava no passado, no sonho, no desejo, na realização. Fugaz é o presente, que se vai mesmo sem ainda ter sido.

Não há Páscoa sem Paixão. Não há Ressurreição sem Morte. E não há Morte sem Vida. Nesse calendário religioso e sagrado – que conta a história da trajetória cristã no mundo – está todo um roteiro de nossas vidas, da vida de cada um. Ter seu próprio Natal, tropeçar em desejos e na carne, caminhar, viver carnavais, entrar em quaresmas reflexivas e, tendo percorrido sua vida e vivido a Paixão, buscar alguma forma de Morte que conduza, enfim, a alguma Ressurreição. Esse cenário litúrgico parece-me um roteiro, um referencial de vida humana.

Sem infernos, não há céus. Sem demônios, não há deuses. Há, na vida, prêmios e castigos, queiramos ou não. Mas a loucura suicida de globalizações indefinidas deixou-nos soltos no universo. O homem é, sim, universal – mas com umbigo, história e raízes na sua caverna, seu espaço de viver e de reflexões, feito de memória e de memórias. E forjado pelo paradoxo marcante do conflito entre corpo e alma, razão e coração, conhecimento e fé: o Deus ocidental é homicida, um Deus que mata o próprio Filho. Como, em dois mil anos, pudemos viver com um Deus homicida? Não fosse a Ressurreição desse Filho morto, como haveríamos de ficar?

Sem a reflexão pessoal, a Semana Santa seria apenas um apêndice dos dias e semanas e meses úteis para o trabalho. É uma pausa, quando se fica à espera de algo acontecer para o bem de todos, dispensando-se buscas pessoais. Com uma Morte e uma Ressurreição, eis a história já escrita, apenas recapitulada. Mas esse Cristo que morre e ressuscita – filho do Deus homicida – parece ter-se tornado apenas um sinal de ética e, portanto, de técnica. A ética cristã é a técnica apropriada para o capitalismo se tornar cada vez mais eficiente na política e na economia. A mensagem pessoal esgarçou-se.

A Semana Santa trágica – de cores roxas, de silêncios profundos ou de lamentos agônicos – deveria ser recapitulada com mais dignidade. Como se a de hoje, perguntasse à de ontem: “Como era Semana Santa, mesmo?” Então, o canto lancinante da Verônica faria tremer as pedras das ruas, a via-sacra passaria diante dos olhos dos homens, o Calvário seria de cada um. E haveria, talvez, tempo para pensar nesse Deus esquisito que mata para fazer nascer de novo. Por quê? Para quê? Ora, se eu amo o outro, como haverei de permitir a sua morte?

É o mistério de um Deus homicida, coisas da fé. E bom dia.

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