Aprendendo com o belo

Presenciei o horror. E ouvi-o. A multidão de jovens urrava, gania, sacudia-se em gestos, em saltos tribais. Imitavam algo que lhes parecia selvagem: pancadas rítmicas, a percussão de tambores, o metálico de guerreiros. Baile, festa de jovens. Dançava-se, gritava-se, pulava-se a um som, a um ritmo. Era a diversão, “curtiam um som”. Na verdade, desvairavam-se com o ruído, o barulho. Pois nem todo som é música. Sons, todos eles, os ouvidos humanos podem captá-los: o grunhido de um animal, um acorde de Bach; a explosão da bomba, um harpejo, deslizar de violino; maviosidades, guinchos horrendos. Selecionar é refinar. Presenciei e ouvi o horror.

Lembrei-me de uma antiga entrevista com o Maestro Ernst Mahle. Com a sensibilidade dos artistas, Mahle dizia da correlação direta entre ritmos, sons tribais e a violência. São milenares na história humana: sons de guerra, de luta, rufar de tambores, sonidos de trombetas. Apenas o artista consegue fazer música da guerra, dar harmonia marcial aos ruídos enlouquecidos de tribos em luta. Mesmo assim, continuarão sempre trágicos os sons da violência. O melancólico é que a noção tribal de jovens parece absorver a violência, a vontade de guerra, como se fossem valores únicos das tribos. Não são. E eles pintam-se e tatuam-se como tribos. Sem porém, a autenticidade delas. Imitadores, mexem em nossas feridas históricas: onde não se constrói uma nação, disseminam-se as tribos.

Os senhores do mercado, como os tiranos, vivem da brutalização dos sentidos humanos. Propagando análises farisaicas, dizem não estar, o povo, preparado para refinamentos espirituais. Por isso, até os teatros – antes, palcos e templos da arte – são depósitos do lixo cultural. Sonegando requintes do espírito, promovem a intoxicação da inteligência com grosserias e vulgaridades. O poder, mesmo o dito poder democrático, não admite viver com povos culturalmente refinados, pois sabe que estes repelem o dilúvio de grosserias, de pornografias, de pornofonias, que embotam a alma humana. Quando o povo encontra o belo, o eixo muda: a sordidez é repelida.

Vivi essa experiência, morando num lugar retirado, distante das coisas. Um caseiro cuidava dos serviços da terra, horta, plantas, pomar. Era um sertanejo inteligente, mas rude, de pouco falar. Sugeri-lhe, como lazer em horas livres, lesse meus jornais, revistas. Passado algum tempo, o homem monossilábico passou a perguntar-me sobre esporte, política, inflação. Após alguns meses, éramos companheiros de conversas ao entardecer, interlocutores. E vi revelar-se, no homem rústico, a virtude que me faltava: a sabedoria de vida. Tornando-se comunicante, mostrou-se.

Depois, foi com a cozinheira. Ela e o marido deram-me carona e, tão logo entrei no carro, ouvi sons de Vivaldi, “As quatro estações”. Pensei fosse rádio. Era disco. Percebendo-me surpreso, mulher explicou-me: de tanto ouvir música clássica em minha casa, passara a gostar e, com o marido, a formar a sua discoteca de grandes compositores. Entendi, finalmente: o povo é melhor do que suas elites. Incluindo as da área de comunicação.

Vi e ouvi, pois, o horror de tribos enlouquecidas, jovens guerreiros, rebeldes sem causa, noites sem sonhos, sons de grunhidos, ritmos sem música. E tive pena delas e de nós. São tribos, mas não verdadeiras. Pois estas ensinam. Nelas, há o referencial de caciques e pajés. Sem eles, tribos civilizadas são apenas turbas. Bom dia.

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