“…o avental todo sujo de ovo.”

Mother Roulin with Her Baby - Vincent Van Gogh - 1888

Mother Roulin with Her Baby – Vincent Van Gogh – 1888

Um fradezinho santo – velho confessor de doentes e moribundos – contava-nos da agonia final dos enfermos. E dizia que – nos últimos momentos e se ainda podiam balbuciar algo – eles diziam, quase todos, uma só palavra: mãe. E ele, o fradezinho, nunca conseguiu saber se era alegria do reencontro ou um apelo final, um pedido de ajuda e de socorro.

Não ousaria, eu, opinar a respeito desse momento final misterioso e solitário de nós, humanos. No entanto, penso em mim mesmo, imaginando-me naquele último instante mágico. Como seria se eu, então, ainda pudesse ver algo ou algo falar? Ver, penso que já vi – ou foi um delírio? – quando minha mãe nos deixou. Médicos haviam-na declarado inconsciente, finalmente derrotada pelo câncer contra a qual lutara durante quase dois anos. Haviam-lhe previsto apenas três meses de vida. Tanto ela amava vida que dominou a morte por todos aqueles longos e longos meses.

Revezávamo-nos em sua vigília. E aquela noite foi a minha vez. Fiquei ao lado dela, na penumbra, vendo-a imóvel como se dormisse. O fiapo de vida revelava-se na leveza da respiração. Ela estava bela, abatida mas bela. E acontecia conforme ela desejara, que tanto pedira: “Não permitam que o seu pai me veja feia…”  Eles se amavam tanto que minha mãe queria estar sempre bela para ele. Ao longo de suas vidas em conjunto, ela acordava antes para se arrumar,  compor-se ou recompor-se, para que meu pai não a visse amarfanha. Vaidosa até o último instante.

Fiquei – na solidão do quarto de hospital – segurando-lhe um dos pulsos e vi a luz do dia surgir timidamente. Estava, ainda, quase escuro. Então, o pulso de minha mãe parou, a respiração silenciou. Eu quis gritar, lágrimas quiseram escorrer-me dos olhos, um soluço, talvez, escapar-me do peito. Mas não consegui. Pois, de repente, olhando o relógio – eram exatas 7h15 da manhã sombria – a janela se iluminou de tal maneira que pensei fosse, eu, enlouquecer. Foi um esplendor intenso e rápido, quase instantâneo. E, ao mesmo tempo, eu tive medo e senti paz.

A última imagem de minha mãe foi, pois, um raio de sol. Ela se foi há 35 anos. E, ainda hoje, a cada lembrança, tudo começa ou se encerra com uma luminosidade que me pacifica e torna a saudade um sentimento agridoce. Quando chegar a minha vez, tenho certeza de que meu último pensamento será para ela, na lembrança de uma luz intensa, de uma luminosidade festiva, de esplendidez vivamente arcoirisada. E sei que a minha última palavra será, também – como nos contava o santo capuchinho – mãe, minha mãe. Não para que venha em meu socorro, mas para me ninar num último adormecer, um seu beijo de fim de noite. E, comigo, rezar uma última Ave-Maria, aos pés de meu leito.

Parece um inescapável castigo do ser humano esse apenas descobrir as maravilhas que tem quando  as perde. Ah! se as mulheres – diante de seus filhos e maridos – pudessem se lembrar do milagre de “nascer de mulher”. O homem, em especial, vive dessa sua origem e não consegue abandoná-la pelo resto da vida. Foi mulher que o gestou, que o gerou: foi mulher que o amamentou. Que curou seus machucados, que lhe deu de comer na boca. E foi mulher que o criou, que o preparou para a vida. Como poderá ele, então, viver sem carinhos e amor de mulher, se não mais pode ter os de sua mãe?

No Dia das Mães, ainda mais agudamente, sinto o vazio da ausência de mãe. A orfandade de um homem idoso é pungente, um espinho que machuca devagarinho. A orfandade é um estar só irremediável. A do idoso, é um estar só fragilizante. É um dia difícil. Dias antes de esse domingo chegar, já me começam a soar nos ouvidos acordes daquela canção dolorida: “Mamãe, mamãe, mamãe. Eu me lembro o chinelo na mão, o avental todo sujo de ovo…”

E – esforçando-me para não chorar – cantarolo baixinho, o trecho da canção: “Se eu pudesse, eu queria outra vez, mamãe, começar tudo, tudo de novo.”

(N.A. – Esta crônica foi  publicada também no Correio Popular, Campinas, de 6ª.feira, 9 de maio de 2014)

1 comentário

  1. Antonio Carlos Danelon em 10/05/2014 às 14:54

    Lindo, lindo!

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