Ódio e horror às armas

Um dia, uma criança de minha cidade, com apenas oito anos, foi morta por um tiro descuidado do irmão adolescente. O menininho queria brincar de “dar tiro”. O irmão atendeu-lhe o pedido e “brincou” com um revólver de “verdade”. Era arma roubada e pertencia a outro irmão, foragido.

Desde a bomba atômica, armas me angustiam. Odeio-as. Depois de Hiroshima, o mundo parou ao anúncio da bomba sobre Nagazaki. Era a tragédia anunciada. Nunca mais esqueci: foi em 1945, 8 de agosto, e eu mal acabara de completar cinco anos. Em frente à minha casa, ficava o principal cinema de minha cidade. E, naquele anoitecer, não entendo entendi pessoas indo serenamente ao cinema quando se aguardava o fim do mundo. Tive medo do horror, da bomba, da morte brutal, do assassínio. E fui apresentado, pela primeira vez, à estupidez humana.

Armas dizem-me, pois, de tragédias. O menino morto por querer “brincar de dar tiros” aumenta-me a angústia diante do uso de armas, com exceção de arco e flecha, tacape, bodurna, estilingue, bodoque. Povos ditos primitivos, prefiro-os com suas armas precárias a civilizados com suas armas sofisticadas. Havia mais decência em duelos entre cavalheiros, em guerras campais, do que nas guerras civis das cidades. Armar-se porque bandidos usam armas é, de certa forma, o mesmo raciocínio que tenta justificar a desonestidade do cidadão por haver governantes desonestos.

Odeio armas. Pois, insisto, elas me lembram tragédias. Na infância, um ladrão entrou na casa de um amiguinho meu. Na madrugada e ouvindo barulho, o pai do menino, tomou do revólver, saiu pelo corredor que levava ao quintal. No mesmo momento, a mãe de meu amiguinho, preocupada, foi em direção ao quarto das crianças. No escuro, o homem viu o vulto, pensou fosse o ladrão, atirou. Atingiu a mulher no coração. Ela morreu. A família destruiu-se. E, na distante década de 1950, já se discutia a absurdidade de as pessoas terem armas em casa.

Nos 1970, outra tragédia aumentou-me o ódio a armas de fogo. Um adolescente — colega de meus filhos — ouviu, de madrugada, sons diferentes vindos do quarto dos pais. Pareceram-lhe gritos. E eram. O casal discutia, alterado. O garoto criou fantasias, viu como que fantasmas: ladrões no quarto, assaltantes, pai e mãe sendo agredidos. Tomou do revólver do pai, displicentemente deixado num armário, abriu a porta, atirou. Atingiu a mãe, matou-a. Depois de alguns anos, ele enlouqueceu.

Nos dias do golpe militar de 1964, eu dirigia uma redação de jovens jornalistas de esquerda, sem que soubéssemos, na realidade, o que isso significava. Quando o golpe aconteceu, ficamos no vazio, Quixotes sem Sanchos Panças e sem Rocinantes, apenas com nossas Dulcinéias de prostíbulos. Nas cidades interioranas, 1964 foi o ano de vinganças paroquiais. O guarda da esquina era mais poderoso do que os generais. E mais cruel.

Havia ameaças declaradas, outras apenas veladas. Era uma redação pequenina, apesar da riqueza de tantos sonhos. Um empresário influente, amigo dos rapazes — prevendo agressões que enfrentaríamos — procurou-me na redação. Tirou, da pasta, um revólver, deu-mo: “Você precisa se defender.” Não entendi. Ele insistiu, levou-me ao fundo do quintal, encostou uma tábua na parede, quis ensinar-me a atirar. Mostrou-me como mirar, apertar o gatilho. Apertei. Tal foi meu susto que levei o revólver para junto do rosto, querendo ver por onde o tiro saíra. O homem tirou-me a arma: ‘O revólver é mais perigoso para você do que os inimigos.” Foi o meu único tiro, além das batalhas de quintais, galopando cabos de vassoura e enfrentando “bandidos’ com revólveres de madeira. Eu era o Cavaleiro Solitário, não usava balas, no lombo de meu corcel imaginário, “Hi Yo Silver”.

Odeio armas. Até estilingues me dão náusea. Pois eu também era Tarzan. Uma tarde, saí do alto da árvore resolvido a caçar para alimentar meu amor da floresta: : “Me Tarzan, You Jane”, falei para Cidinha. Tomei do estilingue, fiquei à espreita. Vi o passarinho ciscando no chão, sob a jaboticabeira. Mirei o bichinho, atirei: atingi-lhe o peito. Vi o sangue escorrer, esqueci-me de Jane, pedi socorro: “Mãe, acuda, matei um passarinho.”

Chorei, nunca me esqueci do sangue derramado. Nem da cova cristã que fiz à minha vítima: uma caixa de sapato, enterrada num canteiro de flores e uma cruz de gravetos. Eu, assassino. Por isso, odeio armas. E tenho pena de quem gosta delas.

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