Viciados em “ser do contra”

Do contraQuase não acredito já sejam sessenta os anos em que acompanho a Seleção Brasileira de Futebol. Fui viciado por meu pai. E me lembro – com nitidez também espantosa – assusta, do que aconteceu em minha casa naquela tragédia da Copa de 1950. Eu tinha apenas 10 anos. Já fora, acho que nos meus cinco ou seis anos, apresentado ao futebol, levado por meu pai a um jogo do Corinthians no Parque São Jorge. A explosão da torcida, os fogos, as bandeiras – que já existiam, ainda que tímidas, àqueles tempos – a paixão popular me seduziram. Tornei-me cativo do futebol até mesmo antes de entendê-lo, aquilo que de Santo Agostinho já falava do amor: “primeiro, amei o amor.” E amor não se entende.

Antes da Copa de 1950, lá estava, eu, com meu pai, carregando tijolos para concluir a reforma do Estádio do XV, na Rua Regente Feijó. Era exigência da Federação Paulista de Futebol, já que o Nhô Quim se tornara o primeiro campeão do interior paulista a ingressar na divisão principal. O futebol entrara-me na vida como algo essencial, visceral, vinculado à família, à cidadania, ao amor pela cidade, pelo país, pelo mundo, pela vida.

Na Copa de 1950, meu pai ficou com os ouvidos colados a um imenso rádio de válvulas, acho que da marca Phillips, que não sei se ficava na cozinha, se ele o colocara lá naquela tarde fatídica. Fiquei ao lado dele, ouvindo a narração do jogo, tenho quase a certeza de que pela Rádio Nacional. A narrativa era interrompida por chiados, essa inacreditável, hoje, limitação dos meios de comunicação. E me lembro das queixas de meu pai e dos amigos dele: o técnico, Flávio Costa, devia ter escalado o time com Cláudio, ponta direita do Corinthians, no lugar de Friaça; e com Rodrigues, ponta esquerda do Palmeiras, no lugar de Chico. Lembro-me de tudo. E me dói, ainda agora, recordar-me do urro de agonia de meu pai, do murro que ele deu na pequenina mesa sobre a qual estava o rádio – rachando-a ao meio – quando o jogo terminou e o Brasil perdeu, a vitória do Uruguai.

Pois bem. Fui crescendo. Sofri em 1954, aquele desastre total. E, em 1958, acompanhei os protestos contra a Seleção, o medo, o trauma e, enfim, a alegria pela vitória, após um sofrimento atroz. Eu, estudante, estava em São Paulo. Do alto do apartamento, iríamos jogar papel picado para celebrar a grande conquista. Mas, quando a Suécia marcou o primeiro gol, o fantasma de 1950 retornou e meus amigos e eu quase morremos de dor e tristeza.

De lá para cá, acho eu – após acompanhar, por rádio e tevê, todas as copas de que o Brasil participou – vivemos a síndrome de 1950, um medo coletivo inconsciente, uma insatisfação permanente, acho que quase um masoquismo de não querer ser feliz. É, sim, o medo de ser feliz. Pois, antes de acontecer, já temos medo de até imaginar o bom, o bonito, o feliz, o alegre. E se não acontecer? O sofrimento deste primeiro jogo do Brasil na África parece-me explicar essa síndrome, esse complexo, esse medo. Desde antes de começar o jogo, já tínhamos medo. Durante o jogo, ficamos resmungando, querendo trocas e substituições. O Brasil odeia Dunga como odiou Flávio Costa, Lazaroni, Zagallo, Felipão, Parreira. Para, somente depois, respeitar alguns deles.

Há teorias sociológicas e antropológicas que dizem desse banzo da alma brasileira, forjada por espíritos europeus, negros e indígenas. É como se gostássemos de estar tristes, como se sofrer fosse um destino. Explodimos de alegria sem precisar de motivo. Mas, na expectativa de grandes alegrias, ficamos com medo. Ora, o Brasil ganhou da Coréia do Norte, por míseros dois gols contra um. A vitória foi importante para nos classificar para uma outra fase. E estamos descontentes. Da mesma forma como, quando o Brasil – como país e nação – cresce, se agiganta e há quem fique reclamando. Somos, acho eu, viciados em reclamação. É um vício nacional que comanda até mesmo a vida pessoal, sei lá. Bom dia.

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