“In Extremis” (107) – Um sonho vingativo, mas reconfortador

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(imagem de Gordon Johnson, por Pixabay)

Já quando criança maravilhei-me com o infinito poder da imaginação. Desde então, imaginar e sonhar de olhos abertos são, para mim, tão especiais tesouros que não admito sejam censurados. Lembro-me, para ilustrar, de minha primeira implicância com padres do Colégio Dom Bosco, quando eles falavam em pecado por “pensamentos, palavras e obras”. Ora, por obras e palavras, isso me é aceitável, compreensível. Mas, pecar por pensamentos? Nunca admiti essa hipótese. Ainda hoje, não aceito.

Que mal posso, eu, fazer com meus mais íntimos pensamentos? E com os meus sonhos de olhos abertos? Mesmo agora – quando me é quase impossível uma corrida de 100 metros – sonho em ser centroavante do Corinthians. E imagino-me driblando toda a defesa do Palmeiras e, para zombar, fazendo gol de calcanhar. E a satisfação que eu vivo sempre que me vejo dando um soco na cara do Frank Sinatra por ter, ele, ficado com a Ava Gardner? E quando eu xingo, cara a cara, a mãe daquele horroroso professor que me fez copiar 100 vezes o enunciado de Pitágoras que errei?

Sonhar acordado, imaginar coisas, situações, realizar desejos, vingar-se, detestar e amar, reviver a saudade, reparar erros, não fazer o que já se fez, fazer o que não se fizera – eis aí, acredito eu, uma das mais belas e eficientes legítimas defesas do ser humano. Portanto, em sonhos meus ninguém mete o bedelho. Aliás, tenho certeza de que o próprio Deus não se importa, vendo-me, apenas, como tolo, sonhador, bobalhão – mas nunca pecador. Sonhar é terapêutico.

Pois bem. Estou fascinado por um sonho de olhos abertos que venho acalentando. E que aperfeiçoo a cada vez que o imagino. Com esse auxílio de 150 reais – 250, 375, vá lá – que o governo dispôs para a multidão de brasileiros famintos, injustiçados, vitimados, criei um sonho reconfortador. Os personagens são o Jair e família, lá de Brasília. O Jair iria receber 250 reais para sobrevir, com mulher e filha, no palácio daquela que – ó, amargura! – foi a Capital da Esperança e que mais parece o Hades dos brasileiros.

Vamos ao Jair. Ele, dona Michele e a filhinha continuariam no monumental Palácio do Alvorada. Só para lembrar: o terreno tem 36 mil m2, três pavimentos, 10 mil m2 de área construída, oito quartos com quatro suítes, biblioteca, salas de lazer e o que possa imaginar o desempregado brasileiro. E nem se fale no número de serviçais. No meu sonho, a família presidencial continuaria lá. Nas condições, porém, propostas aos milhões de brasileiros: apenas com 250 reais para sobreviver.

Jair não teria nenhum serviçal. Mas, para ser bonzinho som ele, seu aluguel seria de apenas 20 reais. Mas água, energia elétrica, mantimentos, limpeza, necessidades familiares – tudo ficaria por sua conta. Com os 250 reais, como milhões de brasileiros desamparados. Aliás, ele poderia, também, aconselhar-se com o Paulo Guedes para administrar a sua economia doméstica. Seria uma festa! E estou até vendo dona Michelle gritando: “A menina está com fome! O que nós vamos fazer?” No meu sonho, o Jair não poderá lançar a culpa no Lula: “Foi ele, é ele o responsável por nossa miséria, ó, mulher!”

E, como ocorre em toda família, a menina poderá ter uma febrezinha: “Jair, ela está doente. Não temos nem aspirina aqui em casa.” No meu sonho, o Jair – desesperado, ainda mais alucinado, revoltado até contra Deus – pensará em suicidar-se. Mas não permito. Jair precisará continuar vivendo para sentir a dor, o sofrimento de multidões de brasileiros.

Pode até ser vingança, mas é um sonho reconfortador.

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