“In Extremis” (134) – Carretel, escovão, tacho….
Benditos os céus – quanto já vivi! Posso, tranquila e serenamente, recorrer a Gonçalves Dias, no I Juca Pirama: “Meninos, eu vi!” E rendo graças pelo tanto e pelo quanto. Quando menos se espera – quase sempre, pensando estar-se em sossego – eis que somos despertados a lembranças, recordações, aromas que pareciam desaparecidos. A simples cena de um filme consegue arrebatar-nos para um tempo, uma época, um momento da vida guardados em algum escaninho da memória. E o impacto de um perfume que nos seduziu no passado?
Eis que lá estava, eu – cinéfilo incorrigível – em meu horário sagrado, silencioso e solitário de selecionar um filme e participar de seu enredo. É a minha missa diária, quando fecho as portas para o mundo não me perturbar. Às vezes – ou quase sempre? – a história narrada é mais enriquecedora do que a história vivida. Pois bem. Filme escolhido, deixei-me conduzir pela narrativa, sendo levado à II Guerra Mundial. Os nazistas, no filme, acabavam de invadir a França. Maio de 1940, ano em que nasci. E houve armistício no dia 25 de junho, no meu primeiro dia de vida. Comecei a viajar pela eternidade do tempo, essa fantástica eternidade que, por ser como é, permite retornarmos ao passado sem sair do presente. E, mais e melhormente, ignorar o futuro.
O filme contava a saga de mulheres lutando pela sobrevivência das famílias, à ausência de seus homens levados aos campos de batalha. Numa das cenas, elas costuravam. Retratava-se uma época mergulhada em incertezas. E a objetiva fixou-se em alguns carretéis de fios de costura. Simples carretéis, de que eu nem mais me lembrava existissem. Bastou vê-los para ver-me conduzido àqueles anos, tão longínquos anos, de minha infância nos quarteirões de nossa ainda tão pacata cidade. E lá estavam elas, minha mãe e as vizinhas, costurando, animadas por conversas intermináveis, serenas e alegres. De quando em quando, elas nos chamavam – a mim e a outras crianças – simplesmente para passar as linhas pelo buraquinho das agulhas. Elas não mais enxergavam coisas muito próximas. Os carretéis, os dedais, os fios de linhas coloridas, as agulhas, tesouras, panos de sacarias que iriam se transformar em nossos “macacões”. Emocionante lembrar: os macacões. Azuis, de todos os meninos.
A década de 1940 renasceu com detalhes tão vívidos que me pareceu estar no cotidiano. Não sei dizer ter sido saudade, se nostalgia, esse vazio diante de lugares e tempos que lá se foram. Mas eu vi o leiteiro deixando as garrafas às portas das casas. E o moço entregando pães, antes do amanhecer. E o carvoeiro, oferecendo as sacas de carvão. Vi as mulheres esfregando o assoalho com os “escovões”, preparando-o para receber a cera, acho que parquetina, com perfume inesquecível. O assoalho passava a brilhar e tudo me sabe a limpeza, a uma pobreza feita de humildade, sem ranços, como que feita por resignações. Ou por uma esperança inabalável?
As roupas eram lavadas em tacho com água fumegante. E “passadas” com pesados “ferros de passar roupas”, dentro dos quais ardiam brasas. No ar, imperava o cheiro da “roupa passada”. E do feijão na panela. Cheiro de casa, cheiro de família, cheiro de amor feito de confusões mas, em especial, de uma ilimitada fraternidade. Temores, existiam. Mas sem grandes medos. Pois tinha-se a segurança de, sempre, poder-se contar com uma infalível instituição diante de horas amargas e difíceis: os vizinhos.
Um simples filme fortaleceu-me a certeza: éramos gentis, alegres, solidários. E sabíamos disso. E daí? Não sei.
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