“In Extremis” (149) – Medo do ódio, medo de odiar
Até pensei ter compreendido a histórica conclusão de Heródoto: “Eu sou homem e nada do que é humano me surpreende.” Para ele, a vida já lhe mostrara tudo. E acreditei fosse normal isso acontecer com o desenrolar da própria vida, com experiências marcadas por dores e alegrias, descobertas, decepções. Logo, vivendo muito, nada haveria de se estranhar da experiência humana.
Tive essa pretensão. Ora, que mais me faltava ver das grandezas e misérias do ser humano? Tolice minha. Pois agora, com as cenas do assassínio indescritível daquele pobre jovem congolês, tudo de mim se abalou. Por dentro, no mais íntimo. A razão insistia em tentar explicar a brutalidade como, apenas, outra das muitas tragédias dessa época confusa, caótica, desumana. Lá estava, pois, a consequência da ascensão da criminalidade, um problema social fruto das injustiças e desigualdades. Mas a voz interior advertia-me: “Não, não é apenas isso. São sinais. Tudo é ainda mais grave. Entenda!” E, então, tive medo. Medo do ódio disseminado. E – dolorosamente – medo de também odiar.
Ora, um dos causadores do ódio é o medo. Logo, vimo-nos diante de um círculo vicioso: o medo causa ódio, o ódio produz o medo. E parece-me ser, esse e nestes anos, um pálido retrato das multidões de brasileiros: medo da instabilidade, medo da violência, da ignorância e incapacidade oficiais, medo do que virá e daquilo que se não entende. É quando, também, a esperança fraqueja. Sem perspectiva, os ódios vicejam. E explodem, gerando vítimas como aquele pobre moço assassinado sem motivo algum.
Ao ver as cenas revoltantes, a indignação e o horror, senti que se me abriram os olhos da alma. E, então, comecei a enxergar ainda mais além. Um dos homens – aquele que admitiu ter feito o crime “por raiva” – estava matando mais do que o pobre Moïse. Ele queria matar Deus, matar a vida, matar o Brasil, matar o que ele não entendia, matar, enfim, um mundo onde o ser humano está perdendo a importância. E meu medo pessoal alertou-me para o sentimento que, vagarosamente, se me vai, também, pulsando no coração: o ódio está surgindo dentro de mim. Estou odiando – com amargor de vinagre – o apequenamento da nação, a tragédia da fome que chegou, o desmonte das instituições que já estavam fragilizadas. Estou odiando políticos irresponsáveis, falsas lideranças e mentiras de governantes de todos os níveis. Estou odiando o temor, a sensação, a intuição de apocalipse que me domina. E odeio essa minha impotência de tão pouco poder fazer.
Não há mais que se procurar responsabilizar terceiros. Numa democracia verdadeira, a responsabilidade é do povo, da população. Pois é o povo que escolhe seus representantes, é o povo que os elege. Uma outra morte testemunha o caos social que vimos aceitando. Um trabalhador, negro, voltando para casa foi assassinado por um vizinho pelo simples fato de este sentir-se ameaçado pelo nada. Sacou do revólver e atirou. Ele, o criminoso, seguia a filosofia do presidente: arme-se, defenda-se, cada um por si. Ou seja: estupidez suicida.
Há, porém, uma perspectiva ao mesmo tempo alentadora e perigosa. Medo e ódios transformam-se, lentamente, em loucura. E ela já desponta. Uma loucura coletiva. Espero, no mais fundo de mim, que seja a loucura entendida por Platão: a boa loucura. Que ela nos incendeie como o gênio do filósofo a entendeu: “dom divino, inspiração, profundo amor à vida.” É a santa loucura, aquela mesma que levou um homem – há mais de dois mil anos – a morrer por uma boa nova. Que, desgraçadamente, ainda não se realizou.
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