“In Extremis” (176) – Jô e herdeiros de Vinicius

Jo-Soares

Jô Soares. (foto: reprodução Google)

O tanto e o quanto – de emoção, tristeza, de celebração – causou a morte de Jô Soares talvez não corresponda, ainda,  à importância desse admirável ser humano na cultura brasileira. Piracicaba não ficou indiferente, vivendo, com intensidade, as mesmas emoção e comoção. Surpreendeu-me, no entanto, haverem ressuscitado até mesmo uma longínqua entrevista que Jô fez com este escrevinhador caipira. Foi quase há 30 anos. E, todavia, o milagre da internet reviveu-a como se estivesse acontecendo ainda em nossos dias.

Quanto mais lá se vão dias e anos, mais me convenço de o Mistério ter-me abençoado por viver épocas tão prodigiosas, de encantamentos e de horrores, anos dourados e de chumbo. E por ter coexistido, num mesmo tempo, com luminares da vida brasileira, homens e mulheres que surgiram como se os deuses houvessem resolvido criar obras primas humanas. Como foi possível – neste Brasil atualmente tão mediocrizado – termos sido premiados com personalidades de uma mesma geração, nascidas quase que nos mesmos anos, octogenários: Jô, Pelé, Roberto Carlos, Chico, Caetano, Gil, Elis, Betânia, João Gilberto e tantos outros? E a obra de Juscelino, construção de Brasília, a bossa nova, a chegada do homem à Lua?

Parece fantasia até mesmo relembrar. Jô Soares surgiu num momento de explosão cultural, artística, econômica que, em meu entender, teve um visionário inspirador: Vinicius de Moraes. Como que repentinamente – numa libertação coletiva – rompiam-se tabus, libertavam-se algemas. Acontecia no mundo todo. Elvis Presley, os Beatles, o rock, a família Kennedy, o Papa João XXIII, Fidel em Cuba, a pílula anticonceptiva. Até mesmo a gravidez feminina – barrigas santificadas – foi erotizada: Leila Diniz, quase prestes a dar à luz, desfilou de biquíni em praia carioca. E o Brasil quase enlouqueceu com o atrevimento. Eram os anos dourados. E não sabíamos disso.

O moço Jô Soares surge nesse torvelinho cultural. Estranho, quando se conta a sua admirável trajetória, se esqueça da importância de Silveira Sampaio – o primeiro a apresentar o talk show na teve brasileira. Jô foi, desde mocinho, assistente precoce e já genial dele. É imperdoável o esquecimento – ou proposital? – da vida de Silveira Sampaio, um precursor cultural. Jô surge ali. E foi quando, ao final dos 1950, cruzei com ele pela primeira vez. Ainda adolescente, fui privilegiado em ter por mestres personalidades como Thales de Andrade, João Chiarini, Luiz Thomazzi, Blota Junior, entre outros. E foram estes dois últimos que me apresentaram ao universo ainda adolescente da televisão brasileira. Jô era não mais um “menino de ouro” ou “promessa”. Jovenzinho, ele causava espanto por sua cultura, inteligência e maturidade.

Aquele universo cultural – que recuperou a arte como inspiradora das decisões humanas – foi golpeado com o ressurgimento de ditaduras que se amedrontaram com a sensibilidade dos povos latino-americanos. A América Latina despertara para a riqueza de suas próprias raízes. E – com a Guerra Fria – viveu-se o conflito entre o chamado “mundo livre” e o comunismo soviético. Ambos expansionistas, mas negando seus instintos intervencionistas. E, em regimes materialistas, sabe-se que a primeira vítima é a Verdade. E esta, especialmente em povos mais sofridos, é revelada, quase sempre, pela alma artística e cultural de sua gente. Jô Soares está no rol dos escritores, jornalistas, comunicadores, artistas que, em nosso país, resistiram às tiranias.

”Ridendo castigat mores” – rindo zombamos dos costumes. Jô foi mestre nessa arte.

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