Quem vê cara…

Lembro-me de quando, há alguns anos, estudantes da Unicamp manifestaram-se agressivamente contra o filósofo Roberto Romano. Trataram-no como a um brutamontes. Tudo porque Romano se opusera, com veemência, aos abusos de bebida no campus universitário. A virulência dos jovens alimentara-se, ainda mais, pela imagem de severidade, quase de mau humor, que acompanha o filósofo. No entanto, quem o conhece pessoalmente sabe tratar-se – além de personalidade impoluta e da sabedoria rara – de um cavalheiro, um gentil-homem, sereno e cordial. Foi a mesma coisa com Paulo Francis. Escrevendo, era um poço de fel e de vaidade. Pessoalmente, um homem doce.

Ora, mais do que a juventude, a sabedoria popular entende das coisas e de pessoas. Quando se diz que “as aparências enganam”, diz-se, também, de certa maneira, que “quem vê cara não vê coração”. Nem sempre isso é verdade, pois o coração transparece na cara. No entanto – seja por formação religiosa, seja por uma cultura cartesiana – já se faz secular o treino para ocultar sentimentos, não revelar emoções. Infelizmente, a civilização não deixa de ser uma máscara, de ter suas máscaras. Criou-se a farsa de que o homem verdadeiro não se revela em seu exterior. Nem se mostra no próprio rosto. Quem puder, haverá de encontrá-lo nos olhos. E olhe lá!

Não há, talvez, quem não tenha a sua experiência pessoal em relação a imagens, tanto as que fazem de nós como as que fazemos dos outros. Lembro-me de minha surpresa ao conhecer o atual deputado Delfim Neto, àquela época todo poderoso ministro de governos militares brasileiros. Delfim era “persona non grata” – para não dizer que odiada – à quase toda a intelectualidade de esquerda e a grande parte da imprensa. Ele como que simbolizava todo um regime que se pretendia derrubar. Conheci-o àquela época. E envergonhei-me de minha avaliação, daquele congelamento de opinião, da “part pris”. Deparei-me com uma personalidade sedutora, homem refinado, de cultura aprimorada, amante das artes, esgrimista de ironias finas. E continua assim.

E Jô Soares? Era, ele, da juventude que borboleteava ao redor de Samuel Wainer, na “Última Hora”, de São Paulo, onde despontava o saudoso Luiz Thomazi, brilhante jornalista piracicabano. Jô era magnífico colunista, “avis rara” da televisão, auxiliar do notável – e ainda não substituído – Silveira Sampaio. Mas, desde moço, um chato. Diante das câmeras, Jô esbanja simpatia. Quando as luzes se apagam, o outro aparece. Quem vê cara não vê coração.

Fui levado, há algum tempo, a refletir mais seriamente sobre isso. Uma menina, de 12 anos, vencera um prêmio escolar nacional, representando Piracicaba. E, a seus professores, fez um pedido que me comoveu: queria conhecer-me, pois pesquisara em trabalhos que eu fizera. Preparei-me com doces, refrigerantes, balas para recebê-la, acompanhada de suas professoras. Mas a menina, ao me ver e dar os primeiros passos na varanda, ficou trêmula, tensa. Beijei-a no rosto, ela falou, tímida: “Eu achei que o senhor era um homem agressivo.” Foi minha vez de entristecer. Eram imagens de tantas lutas. Ela vira a cara, não o coração.

O contrário também vale. Quem conhece malandro que não seja maneiroso e gentil? E não é milenar o beijo da traição? O velho Rípoli tinha uma sabedoria de viver que nos serviu a muitos de nós. Nem sempre ele usou a própria teoria na prática. Mas deixou lições. Certa vez, um jovem político desmanchava-se em mesuras, em gentilezas, em educação refinada, em doçuras sedutoras. Quando ele saiu, Rípoli balbuciou, chupando o cigarro de palha:“Atrás de todo bonzinho tem sempre um grande fdp…”

O tempo deu-lhe razão. Ele vira a cara e vira o coração. Hoje, acho que é isso: o coração está na cara. Sai pelos olhos. As máscaras apenas disfarçam. Bom dia.

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