“In Extremis” (202) – Tesouros ganhos, tesouros perdidos
Lamento não me lembrar de todo o poema e estar, ainda, em dúvida quanto ao autor. Nem mesmo sei se o título original é realmente “Instantes”. E já não importa a discussão sobre a autoria, se de Jorge Luiz Borges, se de Nadine Stair, se de Don Herold. Ainda hoje, o texto me encanta. Na memória, ficaram fragmentos. E de tal forma me impregnou a sabedoria do poema que, embora difuso, carrego-o comigo. O autor fala do que faria se pudesse viver outra vez. Possível fosse, ele, então, haveria de “tomar mais sorvete e menos lentilha”.
E, se houvesse outra vez, o poeta “começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças.” No poema, está posta a sabedoria de viver. Mas, com ela, o absurdo que nos acompanha: sabemos o que seja viver, mas não vivemos. Sabemos estar na simplicidade o segredo da vida. Mas preferimos complicar. Sonhamos com uma casinha à beira mar ou com uma cabana na floresta. Mas recusamo-nos a deixar o apartamento que, em nome da segurança, aprisiona. Além, pois, de perigoso – como afirmou Guimarães Rosa – viver é, também, complicado.
Aconteceu o que humanistas previram, mas que economistas estimularam: o individualismo abalou o espírito de solidariedade. Não conseguiu extingui-lo, mas criou barreiras insuportáveis. Um dos mais famosos abalos na ética do cotidiano aconteceu em meados dos 1970, tendo como ator inocente o extraordinário craque Gérson, campeão do mundo em 1970 e líder da seleção. Na propaganda da marca de um cigarro da época, o então Vila Rica, a agência criou uma peça em que Gerson falava a frase que agitou o país: “Gosto de levar vantagem em tudo. Leve vantagem você também.” – e divulgou a marca do cigarro.
“Levar vantagem em tudo” provocou as mais acerbas discussões. E, com a ascensão de uma das facetas da economia neoliberal, vimos o mundo entrar num radicalismo irracional em que o “vencer a qualquer custo” se tornou filosofia de vida. Houve até um presidente brasileiro que cunhou o propósito de seu governo: “vencer ou vencer”. No entanto, a vida, por sua finitude, são perdas. Tolamente, se bem pensarmos, nada mais temos feito – ao longo dos milênios – senão tentar submeter a matéria à nossa vontade, ao desejo de imortalidade. Mas o que poderia haver de mais monótono e tedioso do que viver eternamente?
Estamos num momento da história humana em que a ciência e a tecnologia trouxeram-nos conquistas antes tidas como impossíveis. O que estamos, agora, presenciando era exuberante fantasia até um passado recente. Mas muito do sonho se realizou. E de tal forma que é justificável o receio de estarmos repetindo a ambição de Ícaro, que, pela fragilidade de suas asas, viveu a tragédia. As descobertas, as realizações, o poderio das máquinas passam a exigir reflexões maduras e urgentes. Pois as distorções sociais, as desigualdades tornaram-se realidades tóxicas e anunciadoras de rupturas apregoadas já às nossas portas.
A quem, na realidade, servem todas as tecnologias apaixonantes? A quantos? Enquanto multidões moram nas ruas, biliardários planejam morar em outros planetas como se a Terra já não lhes bastasse. Insaciáveis, lá se vão navegando por espaços inalcançáveis. E nem sequer pensam em “brincar com crianças, caminhar mais pelas ruas, tomar sorvete”. Quando ou se – algum dia – lembrarem-se dos tesouros da simplicidade, talvez concluam como o poeta em seu poema: “Mas, já viram, tenho 85 anos e estou morrendo.“ E será tarde.
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