“In Extremis” (230) – O reconfortante prefixo “re”

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“Se já sabemos que ‘nunca se entra no mesmo rio’, também nunca é o mesmo o azul dos espaços. E nem o tremeluzir da estrela que antes nos encantou.” (foto: Wes Hicks / Unsplash)

Os que ousamos escrever não sei se compreendemos, em profundidade, maravilhas e segredos da língua portuguesa. E das irmãs latinas. Dificuldades há e muitas. Ainda agora, parecem incríveis tantas regras e leis gramaticais na escritura da linguagem. E, nelas, um sem fim de aprendizados, em especial quanto à acentuação e pontuação. Ora, já se sabe que a “crase não existe para humilhar ninguém”. Mas humilha. E o, para mim, miserável do hífen?

De tal maneira é desafiador, que me cerco de dicionários e gramáticas a meu mais fácil alcance.  E – irritadamente – na expectativa de surgirem outras mudanças. Arriscar-se, pois, a escrever – acredito nisso – é ser estudante por toda vida. Logo, preparar-se para encontrar como que segredos ocultos na arte da linguagem. Um aprendizado diário. Mas enriquecedor. Um exemplozinho: qual a diferença entre coser e cozer?

O uso da palavra impõe, também, imensa responsabilidade social de cada um. É o “verbum” latino. E, certamente, uma das mais exuberantes genialidades humanas para a comunicação. Impressionante seria lembrar que, ainda no Gênesis, foi dado, ao homem, a tarefa de dar nome às coisas. De quanta riqueza interior, pois, somos portadores!

E o admirável falar consigo próprio? Eu falo comigo, tu falas contigo, ele fala consigo…  E nós falamos entre nós. Ora, quantas vezes já não fui advertido de estar “falando sozinho”? Pensam que endoidei de vez. Mas quem disse que falo sozinho? Falo com meus fantasmas, com meu coração, com pessoas queridas distantes ou ausentes. E xingo-me, também. Advirto-me. Assim, aos trancos e barrancos, vai-se aprendendo.

Dou-me conta, agora, de estar entrando na fase do “re”. Quase tudo me tem sido “re”. Desconfio ter começado com o reler. Pois voltei, cada vez mais interessadamente, a reler livros e escritos. E o prefixo “re”, muitas vezes, significa um “outra vez”. Reler Machado, reler Proust, reler Cecília Meirelles, Neruda… Recuso-me, porém, a tentar reler o “Ulisses”, de Joyce. Nunca fui além das primeiras dez páginas. E, também, o “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. Ora, se nada entendi antes, sei não vir a fazê-lo agora. Falta-me inteligência.

Tenho sido, pois, desafiado a rever. A rever-me. Quase que por inteiro. E, então, reaprender. E recomeçar. Rever conceitos, algumas poucas certezas. Reiniciar caminhadas interrompidas. Reatar amizades perdidas ou fragmentadas. Reviver maravilhas alentadoras e frutificantes. Revisar convicções que me pareciam pétreas. Recuperar valores abandonados ou esquecidos. Reclamar ainda mais de injustiças e ilegalidades. Renovar esperanças, renovar-me a mim mesmo. Recuperar belezas e bem esquecidos. Reconfortar os desanimados, sofridos. Reconhecer erros e equívocos próprios. Reconciliar-me com Deus e pessoas feridas. Retomar ideais adormecidos.

Logo, um permanente reiniciar. Que parece ser o destino do ser humano, um aprendiz em cada momento de sua própria história. A tão propalada sabedoria nunca será alcançada mesmo que, em sua busca, venhamos a viver experiências alheias. A do recolhimento, por exemplo. Ou a do silêncio. Para quê? Pois, em cada sinal da natureza, está a verdade da vida. Que, na realidade, é uma fantástica rotina em que, parecendo repetir-se, nada é igual. Como que milagrosamente, cada amanhecer é diferente do outro. E cada entardecer, os entardeceres. Se já sabemos que “nunca se entra no mesmo rio”, também nunca é o mesmo o azul dos espaços. E nem o tremeluzir da estrela que antes nos encantou.

Renascer a cada dia. Eis o segredo para continuarmos por aqui.

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