“In Extremis” (47) – “Faz escuro, mas eu canto…”

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(foto: Andrey Grinkevich / Unsplash)

Ninguém avisou plantas, bichinhos, pedras – nem mesmo a Lua e as estrelas – que um vírus ameaça devastar os humanos.  Sei disso por, todos os dias, estar com eles em meu pedaço de chão. Vejo-os como se, neles e para eles, nada lhes estivesse acontecendo. Parecem-me até mesmo mais serenos, tranquilos. Pois o ar ficou mais limpo e as águas como se filtradas por mãos mágicas. O céu, em São Paulo, ficou cor-de-rosa, com pinceladas alaranjadas. Passarinhos estão divertindo-se sem receio de serem atrapalhados em sua encantadora festa. Enfim, a Natureza segue o seu curso.  E nós, ameaçados pelo vírus, ficaremos apenas amedrontados?

Ora, viver é, também, escolher. Sempre. Fazemos escolhas em quase todos os momentos. São, geralmente, escolhas, opções que não nos trazem graves consequências. Comer, não comer; beber, não beber, o nosso cotidiano. No entanto, há opções totalizantes, decisivas para nossas vidas. Casar, por exemplo.  É escolha totalizante, que determina o rumo da vida. Quando optei por um estilo de viver, eu sabia ser uma decisão totalizante. Quis ser jardineiro. De meu chão e de minha alma. Nele e nela.

O vírus, penso eu, obriga-nos a uma escolha totalizante: viver ou morrer, vencer ou perder.  Desafia-nos a ouvir o nosso sentimento básico: a luta pela sobrevivência. Mas pedras, plantas, bichinhos, céu, Lua, Sol, estrelas – não foram avisados do desmoronamento de tudo. Apenas os humanos sabem dos biliões de pessoas desamparadas, famintas, desabrigadas sob todos os céus conhecidos. Desnuda-se a crueldade das injustiças que os sistemas econômicos – todos eles – impingiram à humanidade. A desigualdade é pérfida. Nem mesmo a morte nos iguala, nem mesmo o vírus devastador. Pois são os indefesos a quem mais a morte alcança; são os desprotegidos a quem mais o vírus traz o infortúnio. Como sempre.

Alma, espírito, coração, neurônios – tudo de mim anseia por maior participação. Mas o corpo mal responde. A razão insiste em mostrar-me os limites, a impotência diante dessa repetição da praga do Egito, de gafanhotos devorando tudo. Avisos? Sinais? Consequências de irresponsabilidades universais, de egoísmos doentios? O instinto de solidariedade grita.  Participar. Mas como?

Foi, então, que me aconteceu um sonho. Não o de olhos abertos, mas no sono. Por mais que a ciência explique o sonhar, o sonho é, para mim, mistério fascinante. Recuso explicações, pois prefiro que o sonho esteja envolto pelo inexplicável. Especialmente nesta época tão árida, o misterioso me estimula a imaginação. Explicações, desisti delas.

Sonhei com uma das pessoas mais encantadoras que conheci ao longo da vida: o poeta Thiago de Mello. Ao sair da primeira entrevista que fiz com ele – pois, em seguida, foram dias e dias – sofri de uma atordoação inexplicável, náusea profunda que me prostrou.  O mundo em que ele vivia era real, não um sonho, uma esperança, um desejo. Mas, no meu sonho recente, Thiago não apareceu. Havia apenas uma voz serena, aconchegante que me falava: “Faz escuro, mas eu canto”.

Era ele, novamente. Thiago de Mello repetindo aquilo que nos orientou e consolou em outra época, não tão agônica como essa, mas também trágica:

Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada,
vem o sol, quero alegria,
que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre, fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.

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